Page 99 - 3M A ALMA ENCANTADORA DAS RUAS
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Nos pontos dos bondes, pelas ruas, guiadas sempre por crianças de faces inexpressivas, vemos
tristes criaturas com as mãos estendidas, mastigando desejos para a nossa salvação, com a ajuda
de Deus
Há a Antônia Maria, a Zulmira, a viúva Justina, a d. Ambrosina, a excelente e anafada tia Josefa;
umas magras, amparadas aos bordões, chorando humildades; outras gordas, movendo a mole do
corpo com tremidinhos de creme. Às portas das igrejas param, indagam quem entra, a ver se a
missa é de gente rica; postam-se nas escadarias, agachadas, salmodiando funerariamente,
olhando com rancor os mendigos – negros roídos de alcoolismo, velhos a tremer de sífilis. A lista
dessas senhoras é interminável, e há entre elas, negócios à parte, uma interessante sociabilidade.
Cada uma tem o seu bairro a explorar, a sua igreja, o seu ponto livre de incômodos imprevistos.
Quando aparece alguma neófita, olham-na furiosas e martirizam-na como nas escolas aos
estudantes calouros.
Têm, naturalmente, uma vida regrada a cronômetro suíço, criaturas tão convencidas do seu ofício.
Saem de casa às 6 da manhã, ouvem missa devotamente porque acreditam em Deus e usam ao
peito medalhinhas de santos.
Depois, postam-se à porta até que a última missa tenha dado a receita suficiente às várias
dependências do templo, vão almoçar e começam a peregrinação pelos bondes, de porta em
porta, até à hora de jantar. Uma, a Isabel Ferreira, cabocla esguia e má, pede à noite e confessa
que isso dá uma nota mais lúgubre, mais emocionante ao pedido.
Ao passar por essa gente sentem todos o fraco egoísmo da bondade e, cinco ou seis dias
depois de as conversar, percebe-se que esmolar é apenas uma profissão menos fatigante que
coser ou lavar – e sem responsabilidades, na sombra, na pândega. A maior parte dessas senhoras
não tem moléstia alguma; sustenta a casa arrumadinha, canja aos domingos, fatiotas novas para
os grandes dias. São, ou dizem-se, quase sempre viúvas.
Algumas, embrulhadas em xales pretos, acompanhadas de dois ou três petizes, as mais das vezes
alugados – como uma certa mulher cor de cera, chamada Rosa – percorrem os estabelecimentos
comerciais, ou lugares de agitação; sobem às redações dos jornais, forçando a esmola,
agarrando, implorando. A d. Rosa, para dizer o seu nome e a inaudita felicidade da vida numa
rede de mentiras, arrancou-me cinco mil réis, com precipitação, arte e destreza tais que, quando
dei por mim, já ia longe com os petizes e a nota.
Não há uma só cuja coleta diária seja menor de dez mil réis, e, cada qual pede a seu modo,
invadindo até as sacristias das igrejas. A Francisca Soares, da igreja de S. Francisco, envolta em
uma mantilha de velho merinó, começa sempre louvando os irmãos benfeitores pintados pelo
sr. Petit.
Que retratos! Estão tal qual, certinhos! Depois, pergunta-nos se não temos coupons de volta dos
bondes, arrisca-se a implorar o tostão em troca do coupon e, quando vê a moeda, fala mais do sr.
Petit e acha pouco. Outras, dotadas de grande vocação dramática, sussurram, com a face
decomposta, a angústia de um irmão morto em casa, sem dinheiro para o caixão. O resto, sem
inventiva, macaqueia o multiformismo da invalidez, rezando.
A esmola, apesar da crise econômica que os jornais proclamam, subiu. Não há quem dê moeda
de cobre a um mendigo sem o temor de desgostá-lo ou de levar uma descompostura cheia de