Page 96 - 3M A ALMA ENCANTADORA DAS RUAS
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– Hein? Já quatro horas? fez o rapaz acordando.


               – Que faz aqui?


               – Espero a hora do bote para a ilha. Sou carvoeiro, sim senhor... Ai! minha mãe! Vão levar-me
               preso!


               Subitamente, porém, apalpou as algibeiras, olhou-nos ansioso. Tinha sido roubado! Houve um
               rebuliço. Como por encanto, homens, havia ainda minutos, a dormir profundamente, acordavam-
               se. O sr. delegado, alteando a voz, deu ordem para não deixar sair ninguém sem ser revistado.
               O encarregado, com perdão do sr. delegado e das outras senhorias, descompunha o pequeno.


               –  Trouxe dinheiro, maricas? Já não lhe tenho dito que entregue? É lá possível ter confiança nesta
               súcia. E a minha casa agora, e eu? Besta de uma figa, que não sei onde estou...


               Os agentes faziam levantar a canalha, arreliada com o incidente e na luz vaga os perfis patibulares
               emergiam com gestos cínicos de espreguiçamento.


               Tanto o bacharel como o adido mostravam na face um leve susto. O delegado contemplava-os.


               – Que lhes dizia eu? Uma sensação, meus caros, admirável. Subamos ao último andar!


               Havia com efeito mais um andar, mas quase não se podia chegar, estando a escada cheia de
               corpos, gente enfiada em trapos, se estirava nos degraus, gente que se agarrava aos balaústres
               do corrimão – mulheres receosas da promiscuidade , de saias enrodilhadas. Os agentes abriam
               caminho, acordando a canalha com a ponta dos cacetes. Eu tapava o nariz. A atmosfera sufocava.
               Mais um pavimento e arrebentaríamos. Parecia que todas as respirações subiam, envenenando
               as escada e o cheiro, o fedor, um fedor fulminante, impregnava-se nas nossas próprias mãos,
               desprendia-se das paredes, do assoalho carcomido, do teto, dos corpos sem limpeza. Em cima,
               então, era a vertigem. A sala estava cheia. Já não havia divisões, tabiques, não se podia andar
               sem  esmagar  um  corpo  vivo.  A  metade  daquele  gado  humano  trabalhava;  rebentava  nas
               descargas dos vapores, enchendo paióis de carvão, carregando fardos. Mais uma hora e acordaria
               para esperar no cais os batelões que a levassem ao cepo do labor, em que empedra o cérebro e
               rebenta os músculos.


               Grande parte desses pobres entes fora atirada ali, no esconderijo daquele covil, pela falta de
               fortuna. Para se livrar da polícia, dormiam sem ar, sufocados, na mais repugnante promiscuidade.
               E  eu,  o  adido,  o  bacharel,  o  delegado  amável  estávamos  a  gozar  dessa  gente  o  doloroso
               espetáculo!


               – Não se emocione, disse o delegado. Há por aqui gatunos, assassinos, e coisas ainda mais
               nojentas.


               Desci. Doíam-me as têmporas. Era impossível o cheiro de todo aquele entulho humano. O adido
               precipitou-se  também  e  os  outros  o  seguiram.  Embaixo,  a  vistoria  aos  fregueses  não  dera
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