Page 95 - 3M A ALMA ENCANTADORA DAS RUAS
P. 95
– Mostre-nos isso! fez a autoridade, minutos depois.
– Não há acusação contra a casa, há sr. doutor?
– Não sei, ande.
O encarregado, trêmulo, seguiu à frente, erguendo o castiçal. Abriu uma porta de ferro, fechou-a
de novo, após a nossa passagem. E começamos a ver o rés-do-chão, salas com camas
enfileiradas como nos quartéis, tarimbas com lençóis encardidos, em que dormiam de beiço
aberto, babando, marinheiros, soldados, trabalhadores de face barbuda. Uns cobriam-se até o
pescoço. Outros espapaçavam-se completamente nus.
A mando da autoridade superior, os agentes chegavam a vela bem perto das caras, passavam a
luz por baixo das camas, sacudiam os homens do pesado dormir. Não havia surpresa. Os pobres
entes acordavam e respondiam, quase a roncar outra vez, a razão por que estavam ali,
lamentavelmente. O bacharel estava varado, o adido tinha um ar desprendido. Não tivesse ele
visitado a miséria de Londres e principalmente a de Paris! O delegado, entretanto, gozava aquele
espetáculo.
– Subamos! murmurou.
Trepamos todos por uma escada íngreme. O mau cheiro aumentava. Parecia que o ar rareava,
e, parando um instante, ouvimos a respiração de todo aquele mundo como o afastado resfolegar
de uma grande máquina. Era a seção dos quartos reservados e a sala das esteiras. Os quartos
estreitos, asfixiantes, com camas largas antigas e lençóis por onde corriam percevejos. A
respiração tornava-se difícil.
Quando as camas rangiam muito e custavam a abrir, o agente mais forte empurrava a porta, e, à
luz da vela, encontrávamos quatro e cinco criaturas, emborcadas, suando, de língua de fora;
homens furiosos, cobrindo com o lençol a nudez, mulheres tapando o rosto, marinheiros "que
haviam perdido o bote", um mundo vário e sombrio, gargulejando desculpas, com a garganta seca.
Alguns desses quartos, as dormidas de luxo, tinham entrada pela sala das esteiras, em que se
dorme por oitocentos réis, e essas quatro paredes impressionavam como um pesadelo.
Completamente nua, a sala podia conter trinta pessoas, à vontade, e tinha pelo menos oitenta nas
velhas esteiras atiradas ao soalho.
Os fregueses dormiam todos – uns de barriga para o ar, outros de costas, com o lábio no chão
negro, outros de lado, recurvados como arcos de pipa. Estavam alguns vestidos. A maioria
inteiramente nua, fizera dos andrajos travesseiros. Erguendo a vela, o encarregado explicava
que ali o pessoal estava muito bem, e no palor em halo da luz que ele erguia, eu via pés disformes,
mãos de dedos recurvos, troncos suarentos, cabeças numa estranha lassidão – galeria trágica de
cabeças embrutecidas, congestas, bufando de boca aberta... De vez em quando um braço erguia-
se no espaço, tombava; faces, em que mais de perto o raio de luz batia, tinham tremores súbitos
– e todos roncavam, afogados em sono.
Um dos agentes sacudiu um rapazola.