Page 101 - 3M A ALMA ENCANTADORA DAS RUAS
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O gênero é relativamente agradável, à vista dos outros – o das vagabundas ladras e das pitonisas
ambulantes, grupo de que são figuras principais as sras. Concha e Natividad, espanholas, e a sra.
Eulália – cigana exótica. A sra. Concha, por exemplo, é cleptômana, e, dessa tara lhe vem a
profissão – da tara e da inépcia policial. Quando cocotte, Concha teve amantes ricos e roubava-
lhes o relógio, os lenços, os alfinetes, por diversão.
Foi presa por um inglês sisudo, e partiu para Lisboa onde repetiu a cena tantas vezes que aos
poucos se viu na necessidade de voltar ao Brasil como criada. Roubou de novo, foi outra vez presa
e resolveu ser cartomante andarilha, ler a buena dicha pelos bairros pobres, pelas estalagens,
para roubar. É gordinha, anda arrimada a um cacete, fingindo ter úlceras nas pernas. Aproxima-
se, pede a esmola como quem pergunta se as coisas vão mal.
– Deus a favoreça!
– Você tem cara de ser feliz! Vamos ver a suerte del barajo.
E tira do seio um maço de cartas. Quem nestas épocas dispersivas crenças, deixará de saber
da própria sorte? Mandam-na entrar e ela conta histórias às famílias enquanto empalma objetos
e alguns níqueis agradecidos.
Natividad e Eulália seguem o mesmo processo, mas Eulália, aduncamente cigana, lê nas mãos
deformadas e calosas dos trabalhadores, enquanto as suas apalpam os bolsos do cliente.
Do fundo desse emaranhamento de vício, de malandragem, gatunice, as mulheres realmente
miseráveis são em muito maior número que se pensa, criaturas que rolaram por todas as infâmias
e já não sentem, já não pensam, despidas da graça e do pudor. Para estas basta um pão
enlameado e um níquel; basta um copo de álcool para as ver taramelar, recordando a existência
passada.
Vivem nas praças, no Campo da Aclamação; dormem nos morros, nos subúrbios, passam à beira
dos quiosques, na Saúde, em S. Diogo, nos grandes centros de multidões baixas, apanhando as
migalhas dos pobres e olhando com avidez o café das companheiras. Eu encheria tiras de papel
sem conta, só com o nome dessas desgraças a quem ninguém pergunta o nome, senão nas
estações, entre cachações de soldados e a pose pantafaçuda dos inspetores; e seria um livro
horrendo, aquele que contasse com a simples verdade todas as vidas anônimas desses
fantásticos seres de agonia e de miséria! Andam por aí ulceradas, sujas, desgrenhadas, com as
faces intumescidas e as bocas arrebentadas pelos socos, corridas a varadas dos quiosques,
vaiadas pela garotada. Nas noites de chuva, sob os açoites da ventania, aconchegam-se pelos
portais, metem-se pelos socavões, tiritando... Às vezes, para cúmulo de desgraça, aparecem
grávidas, sem saber como, à mercê da horda de vagabundos que as viola, que as tortura, que as
bate, sem lhes conceder ao menos a piedade do nojo; e os filhos morrem, desaparecem, levados
na tristura do seu soluçante existir, estrangulados, talvez, nos inúmeros recantos que a milícia do
nosso duplo policiamento ignora.
Acompanhado do cínico Mazzoli, ouvi-lhes as confissões inauditas. Pela noite alta, íamos os dois
para o Largo da Sé, para as beiradas da Santa Casa, e, diante de nós, esses semblantes
alanhados de sofrimento, os olhos em pranto, como um bando de espertos, desvendaram-nos
os paroxismos da vida antiga.