Page 103 - 3M A ALMA ENCANTADORA DAS RUAS
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– Dá-me uma cigarreta, fez com o seu melhor sorriso. Turco? Il y a longtemps!... Oh! Oh! fuma
               gianaclis?


               Arredou as latas, puxou a traparia e os sacos com o ar de mímica Daynès Grassot.


               – Afaste o mendigo, disse baixo, e para a soleira suja: Asseyez-vous. Vous êtes journaliste?


               Eu vinha encontrar à espera dos restos de pão uma das mundanas do Alcazar; eu  estava falando
               com  Françoise  D’Albigny;  a  Fran,  a  levada  Fran,  que  tivera  carros  e  agora  discorria,  com um
               arzinho postiço, da Suzane Castera, de um deputado do norte que ainda hoje figura na Câmara,
               de um conhecido jornalista seu amigo!


               – Desgraças, mon petit! Tenho 65 anos. Casei, sabes, uma loucura! Casei com Maconi, que me
               pôs neste estado!


               Representando logo, o pobre trapo da luxúria elegante, bateu-me a caixa de cigarretas e dinheiro,
               que com um sorriso atroz dizia ser para bonbons.


               Eram dez horas da noite. O dono do quiosque fechava as persianas, apagando os bicos de gás.
               E, vendo-a naquele gozo, na pantomima do prazer, berrou, de longe:


               – Eh! lá, lambisgóia velha, se não te apressas não levas o pão!


               Os que Começam...


               Não há decerto exploração mais dolorosa que a das crianças. Os homens, as mulheres ainda
               pantomimam a miséria para lucro próprio. As crianças são lançadas no ofício torpe pelos pais, por
               criaturas  indignas,  e  crescem  com  o  vício  adaptando  a  curvilínea  e  acovardada  alma  da
               mendicidade malandra. Nada mais pavoroso do que este meio em que há adolescentes de dezoito
               anos e pirralhos de três, garotos amarelos de um lustro de idade e moçoilas púberes sujeitas a
               todas as passividades. Essa criançada parece não pensar e nunca ter tido vergonha, amoldadas
               para o crime de amanhã, para a prostituição em grande escala. Há no Rio um número considerável
               de pobrezinhos sacrificados, petizes que andam a guiar senhoras falsamente cegas, punguistas
               sem proteção, paralíticos, amputados, escrofulosos, gatunos de sacola, apanhadores de pontas
               de  cigarros,  crias  de  famílias  necessitadas,  simples  vagabundos  à  espera  de  complacências
               escabrosas, um mundo vário, o olhar de crime, o broto das árvores que irão obumbrar as galerias
               da detenção, todo um exército de desbriados e de bandidos, de prostitutas futuras, galopando pela
               cidade à cata do pão para os exploradores. Interrogados, mentem a princípio, negando; depois
               exageram  as  falcatruas  e  acabam  a  chorar,  contando  que  são  o  sustento  de  uma  súcia  de
               criminosos que a polícia não persegue.


               A  metade  desse  bando  conhece  as  leis  do  prefeito,  os  delegados  de  polícia  e  acompanha  o
               movimento  da  política  indígena,  oposicionista  e  vendo  em  cada  homem  importante  uma
               roubalheira.  São  em  geral  os  mendigos  claramente  defeituosos  a  que  falta  uma  perna,  um
               braço.
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