Page 104 - 3M A ALMA ENCANTADORA DAS RUAS
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A perda que os tornou inválidos é uma espécie de felicidade, a indolência e o sustento garantidos.
À beira das calçadas o dia inteiro têm tempo de se tornarem homens e de ler os jornais. Fazem
tudo isso com vagar. Quando um ponto se torna insustentável vão para outros, e há entre eles
relações, morféias que se ligam às úlceras, olhos em pus que olham com ternura companheiros
sem braços, e todos guardando a data do desastre que os mutilou, que os fez entrar para a nova
vida com a saudade da vida passada.
Fui encontrar na ponte das barcas Ferry alguns de volta de Niterói. Vinham alegres, batendo com
as muletas, a sacolejar os fartos sacos, na tarde álgida. Só nessa tarde interroguei seis: Francisco,
antigo peralta da Saúde; Antônio, jovem de dezoito anos, que, graças à falta de uma perna,
trabalha desde os doze; Pedro, pardinho crispinhento, que ri como um suíno e é o curador de
uma senhora idosa; João Justino, sem um braço, e pequenos Felismino e Aurélio. Voltavam de
mendigar.
Francisco é atroz. Míope, com a cara cheia de sulcos, a boca enorme e sem dentes, fuma cigarros
empapados de saliva e tagarela sem descontinuar.
– Qual! Niterói não dá nada. Às vezes tenho que pedir emprestado para voltar. O xará não permite
porém mendigo sem realejo. Eu sou fino. Vou para outro lugar.
– Quantas vezes estiveste na cadeia?
– Eu? não senhor! nunca! É verdade que uma vez fui preso por um inspetor viciado... Mas não
estava fazendo nada. Também não me incomodo. Vou, torno a sair. E, sem transição: não imagina
as vezes que tenho sido pegado. O Dr. Paula Pessoa, quando era delegado, já dizia: para pegar
essas inutilidades? E eu só esperando. Olhe – morrer de fome é que eu não morro.
– Então já estiveste preso?
Quantas vezes! É preferível a cadeia ao tal Asilo. Antônio é outro gênero, o gênero dulçoroso,
cheio de humildades açucaradas. Repete logo como uma nota policial o esmagamento da perna.
Foi a 11 de novembro de 1897, na esquina da Rua da Uruguaiana. Caiu às 2 e 20 da tarde, quando
passava o bonde chapa tanto.
E diz essas coisas vagamente magoado como se chorasse sem sentir. Mas mente, inventa nomes,
faz-me jurar que não lhe farei mal, entrega-se à minha proteção, de que depende a sua vida, com
uma detestável e beata hipocrisia. Era ajudante de pedreiro. Após o desastre mandaram-no
esmolar no Passeio Público. O pai é trabalhador, ganha quatro mil e quinhentos, tem oito filhos e
a mulher doente.
Ele ajuda com o dinheiro das esmolas. É um dos casos de formação de caráter, de inversão moral.
Adolescente, forte, musculosa, a permanência na mendicidade deu-lhe à voz melopéias
suspirosas e um recheio de votos pela sorte alheia. Não fala um segundo sem pedir a Deus que
nos ajude, sem agradecer em nome de Deus a nossa bondade.