Page 97 - 3M A ALMA ENCANTADORA DAS RUAS
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resultado. O encarregado ainda gritava e o cabo estava nervoso, já tendo dado alguns murros.
O dr. delegado teve uma última idéia – a visão de uma cena ainda mais cruel.
– Vamos ver os fundos!
Foi aí então que vimos o sofrer inconsciente e o último grau da miséria. O hospedeiro torpe dizia
que por ali dormiam alguns de favor, mas pelo corredor estreito, em derredor da sentina, no trecho
do quintal, cheio de trapos e de lama, nas lajes, os mendigos, faces escaveiradas e sujas,
acordavam num clamor erguendo as mãos para o ar. E de tal forma a treva se ligava a esses
espectros da vida que o quadro parecia formar um todo homogêneo e irreal.
– Tudo grátis aos desgraçadinhos, sibilava o homem musculoso.
Curvei-me, perto da latrina. Era uma velha embiocada num capuz preto.
– Quanto pagou v., minha velha?
– O que tinha, filho, o que tinha, dois tostões...
Dei-lhe qualquer coisa, e mais íntima, esticando o pescoço, ela indagou, trêmula:
– Por que será tudo isso? Vão levar-nos presos?
Mas já o delegado saíra com os seus convidados. À porta o encarregado esperava. Saí. A
escuridão afogava os prédios, encapuchava os combustores, alongava a rua. Não se sabia onde
acabara o pesadelo, onde começara a realidade.
– Basta, dizia o adido, basta. Já tenho uma dose suficiente.
– Também é tudo a mesma coisa. É ver uma, é ver todas.
– E quem diria? concluiu o bacharel, até então mudo.
Neste momento ouviu-se o grito de pega! Um garoto corria. O cabo precipitou-se.
Já outros dois soldados vinham em disparada. Era a caçada aos garotos, a "canoa". A "canoa"
vinha perto. Tinham pegado uns vinte vagabundos, e pela calçada, presos, seguidos de soldados,
via-se, como uma serpente macabra, desenrolar-se a série de miseráveis trêmulos de pavor.