Page 98 - 3M A ALMA ENCANTADORA DAS RUAS
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– Canalhas! bradou o dr. delegado. E ainda se queixam que os mande prender para dormir na
               estação!


               – Nós devíamos ter asilos, instruiu o adido.


               – É verdade, os asilos, a higiene, a limpeza. Tudo isso é bonito. Havemos de ter. Por enquanto
               nosso Senhor, lá em cima, que olhe por eles!


               As  suas  mãos,  maquinalmente  esticaram-se,  e  os  nossos  olhos  acompanhando  aquele  gesto
               elegante de ceticismo mundano, deram no céu, recamado de ouro. Todas as  estrelas palpitavam,
               por cima da casaria estendia-se uma poeira de ouro. Naquela chaga  incurável, chaga lamentável
               da cidade, a luz gotejava do infinito como um bálsamo.


               As Mulheres Mendigas


               A mendicidade é a exploração mais regular, mais tranqüila desta cidade. Pedir, exclusivamente
               pedir, sem ambição aparente e sem vergonha, assim à beira da estrada da vida, parece o mais
               rendoso ofício de quantos tenham aparecido; e a própria miséria, no que ela tem de doloroso e de
               pungente, sofre com essa exploração.


               É preciso estudar a sociedade complicada e diversa dos que pedem esmola, adivinhar até onde
               vai  a  verdade  e  até  onde  chega  a  malandrice,  para  compreender  como  a  polícia  descura  o
               agasalho da invalidez e a toleima incauta dos que dão esmolas.


               Entre os homens mendigos há irmãos da opa, agentes de depravação viciados, profissionais de
               doenças falsas, mascarando um formidável cenário de dores e de aniquilamento. Só depois de
               um longo convívio é que se pode assistir  à iniciação  da maçonaria dos miseráveis, os estudos
               de extorsão pelo rogo, toda a tática lenta do pedido em nome de Deus que, às vezes, acaba em
               pancada.  Os  homens  exploradores  não  tem  brio.  As  mulheres,  só  quando  são  realmente
               desgraçadas é que não mentem e não fantasiam. São, entretanto, as mais incríveis.


               Foi Pietro Mazzoli, um mendigo cínico, que pára sempre no Largo do Capim, quem me apontou
               o meio diverso da mendicidade das mulheres. Pietro é baixo, reforçado, corado. Puxa sempre a
               suiça  potente,  com  o minúsculo chapeuzinho  posto  ao  lado,  sobre  a juba enorme e  cheia de
               lêndeas. É mendigo por desfastio e comodidade. Soldado, fugiu do serviço militar como criado
               de bordo. Em Buenos Aires fez-se inculcador de casas suspeitas, porteiro do mesmo gênero,
               caften, barítono de café cantante, preso. No Rio, sendo-lhe habitual  a prisão, já foi cego, torto das
               pernas,  aleijado  de  carrinho,  corcunda,  maneta,  atacado  do  mal  de  S.  Guido.  É  o  Frégoli  da
               miséria. Antes de se estabelecer mendigo, andou pelo Estado do Rio fazendo dançar um urso que
               era um companheiro de malandragens. Essa pilhéria do urso nada autêntico valeu-lhe uma sova
               e três anos de prisão. Homem de tal jaez conhece todos os truques, a falsa miséria e a verdadeira,
               a exploração e a dor sentida. É ele quem nos inicia.


               Há mendigas burguesas, mendigas mães de família, alugadas, dirigidas por caftens, cegas que
               vêem admiravelmente bem, chaguentas lépidas, cartomantes ambulantes, vagabundas, e uma
               série de mulheres perdidas cuja estrela escureceu na mais aflitiva desgraça.
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