Page 93 - 3M A ALMA ENCANTADORA DAS RUAS
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hospedarias de má fama e que Jean Lorrain se fazia passar aos olhos dos ingênuos como tendo
acompanhado os grão-duques russos nas peregrinações perigosas que Goron guiava.
Era tudo quanto há de mais literário e de mais batido. Nas peças francesas há dez anos já aparece
o jornalista que conduz a gente chique aos lugares macabros; em Paris os repórteres do Journal
andam acompanhados de um apache autêntico. Eu repetiria apenas um gesto que era quase uma
lei. Aceitei.
À hora da noite quando cheguei à delegacia, a autoridade ordenara uma caça aos pivettes, pobres
garotos sem teto, e preparava-se para a excursão com dois amigos, um bacharel e um adido de
legação, tagarela e ingênuo.
O bacharel estava comovido. O adido assegurava que a miséria só na Europa – porque a miséria
é proporcional à civilização. Ambos de casaca davam ao reles interior do posto um aspecto
estranho. O delegado sorria, preparando com o interesse de um maítre-hôtel o cardápio das
nossas sensações.
Afinal ergueu a bengala.
– Em marcha!
Descemos todos, acompanhados de um cabo de policia e de dois agentes secretos – um dos
quais zanaga, com o rosto grosso de calabrês. É perigoso entrar só nos covis horrendos, nos
trágicos asilos da miséria. Íamos caminhando pela Rua da Misericórdia, hesitantes ainda diante
das lanternas com vidros vermelhos. Às esquinas, grupos de vagabundos e desordeiros
desapareciam ao nosso apontar e, afundando o olhar pelos becos estreitos em que a rua parece
vazar a sua imundície, por aquela rede de becos, víamos outras lanternas em forma de foice,
alumiando portas equívocas. Havia casas de um pavimento só, de dois, de três; negras, fechadas,
hermeticamente fechadas, pegadas uma à outra, fronteiras, confundindo a luz das lanternas e a
sombra dos balcões. Os nossos passos ressoavam num desencontro nos lajedos quebrados. A
rua, mal iluminada, tinha candeeiros quebrados, sem a capa Auer, de modo que a brancura de
uns focos envermelhecia mais a chama pisca dos outros. Os prédios antigos pareciam
ampararem-se mutuamente, com as fachadas esborcinadas, arrebentadas algumas. De repente
porta abria, tragando, num som cavo, algum retardatário.
Trechos inteiros da calçada, imersos na escuridão, encobrian cafajestes de bombacha branca,
gingando, e constantemente o monótono apito do guarda noturno trilava, corria como um arrepio
na artéria do susto para logo outro responder mais longe e mais longe ainda outro ecoar o seu
áspero trilo. No alto, o céu era misericordiosamente estrelado e uma doce tranqüilidade parecia
escorrer do infinito.
– Há muitos desses covis espalhados pela cidade? indagou advogado, abotoando o mac- farlane.
– Em todas as zonas, meu caro.