Page 91 - 3M A ALMA ENCANTADORA DAS RUAS
P. 91

– Há quanto tempo aqui?


               – Vai para dois anos.


               – E a cidade não conheces?


               – Nunca lá fui, que a perdição anda pelos ares..


               Este também se queixa da falta de dinheiro porque manda buscar sempre outro almoço. Quanto
               ao trabalho, estão convencidos que neste país não há melhor. Vieram para ganhar dinheiro, é
               preciso ou morrer ou fazer fortuna. Enquanto falavam, olhavam de soslaio  para o Correia e o
               Correia torcia o cigarro, à espreita, arrastando os sacos no pó carbonífero.


               – Deixe que vá tratar do meu serviço, segredavam eles quando o feitor se aproximava. Ai! que
               não me adianta nada estar a contar-lhe a minha vida.


               O  trabalho  recomeçou.  O  Correia,  cozido  ao  sol,  bamboleava  a  perna,  feliz.  Como  a  vida  é
               banal! Esse Correia é um tipo que existe desde que na sociedade organizada há o intermediário
               entre o patrão e o servo, Existirá eternamente, vivendo de migalhas de autoridade contra a vida
               e independência dos companheiros de classe.


               Às 2 horas da tarde, nessa ilha negra, onde se armazenam o carvão, o manganês e a pedra, o sol
               queimava. Vinha do mar, como infestado de luz, um sopro de brasa; ao longe, nas outras ilhas, o
               trabalho curvava centenas de corpos, a pele ardia, os pobres homens encobreados, com olhos
               injetados, esfalfavam-se, e mestre Correia, dançarinando o seu passinho:


                                                             a
               – Vamos gente! Eh! nada de perder tempo. V. S  não imagina. Ninguém os prende e a ilha está
               cheia. Vida boa!


               Foram  assim  até  a  tarde,  parando  minutos  para  logo  continuar.  Quando  escureceu  de  todo,
               acenderam-se as candeias e a cena deu no macabro.


               Do alto, o céu coruscava, incrustado de estrelas, um vento glacial passava, fogo-fatuando a chama
               tênue  das  candeias  e,  na  sombra,  sombras  vagas,  de  olhar  incendido,  raspavam  o  ferro,
               arrancando da alma gemidos de esforço. Como se estivesse junto do cabo e um  batelão largasse
               saltei nele com um punhado de homens.


               Íamos a um vapor que partia de madrugada. No mar, a treva mais  intensa envolvia o steamer, um
               transporte inglês com a carga especial do minério. O comandante fora ao Casino; alguns boys
               pouco limpos pendiam da murada com um cozinheiro chinês, de óculos. Uma luz mortiça iluminava
               o  convés.  Tudo  parecia  dormir.  O  batelão,  porém,  atracava,  fincavam-se  as  candeias;  quatro
               homens ficavam de um lado, quatro de outro, dirigidos um preto que corria pelas bordas do barco,
               de tamancos, dando gritos guturais. Os homens nus, suando apesar do vento, começavam a
               encher  enormes  tinas  de  bronze  que  o  braço  de  ferro  levantava  num  barulho  de  trovoada,
               despejava, deixava cair outra vez.
   86   87   88   89   90   91   92   93   94   95   96