Page 88 - 3M A ALMA ENCANTADORA DAS RUAS
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Um cavalheiro cheio de brilhantes, no portaló, perguntou-me se eu não vira a Lola. Desci, meti-
               me num bote, fiz dar a volta para ver mais uma vez aquela morte lenta entre os pesos. A tarde
               caíra  completamente.  Ritmados  pelo  arrastar  das  correntes,  os  quatro  homens,  dirigidos  do
               convés do steamer, carregavam, tiravam sempre de dentro do saveiro mais sacas, sempre sacas,
               com as mãos disformes, as unhas roxas, suando, arrebentando de fadiga.


               Um deles, porém, rapaz, quando o meu bote passava por perto do saveiro, curvou-se, com a
               fisionomia angustiada, golfando sangue.


               – Oh! diabo! fez o outro, voltando-se. O José que não pode mais!


               A Fome Negra


               De madrugada, escuro ainda, ouviu-se o sinal de acordar. Raros ergueram-se. Tinha havido serão
               até a meia-noite. Então, o feitor, um homem magro, corcovado, de tamancos e beiços finos, o
               feitor, que ganha duzentos mil réis e acha a vida um paraíso, o sr. Correia, entrou pelo barracão
               onde a manada de homens dormia com a roupa suja e ainda empapada do suor da noite passada.


               – Eh! lá! rapazes, acorda! Quem não quiser, roda. Eh lá! Fora!


               Houve um rebuliço na furna sem ar. Uns sacudiam os outros amedrontados, com os olhos só a
               brilhar na face cor de ferrugem; outros, prostrados, nada ouviam, com a boca aberta, babando.


               – Ó João, olha o café.


               – Olha o café e olha o trabalho! Ai, raios me partam! Era capaz de dormir até amanhã.


               Mas, já na luz incerta daquele quadrilátero, eles levantavam-se, impelidos pela necessidade como
               as feras de uma ménagerie ao chicote do domador. Não lavaram o rosto, não descansaram. Ainda
               estremunhados, sorviam uma água quente, da cor do pó que lhes impregnava a pele, partindo o
               pão com escaras da mesma fuligem metálica, e poucos eram os que se sentavam, com as pernas
               em compasso, tristes.


               Estávamos na ilha da Conceição, no trecho hoje denominado – a Fome Negra. Há ali um grande
               depósito de manganês e, do outro lado da pedreira que separa a ilha, um depósito de carvão.
               Defronte, a algumas braçadas de remo, fica a Ponta da Areia com a Cantareira, as obras do porto
               fechando um largo trecho coalhado de barcos. Para além, no mar tranqüilo, outras ilhas surgem,
               onde o trabalho escorcha e esmaga centenas de homens.


               Logo depois do café, os pobres seres saem do barracão e vão para a parte norte da ilha, onde a
               pedreira refulge. Há grandes pilhas de blocos de manganês e montes de  piquiri em pó, em lascas
               finas. No solo, coberto de uma poeira  negra com reflexos de bronze, há rails para conduzir os
               vagonetes do minério até ao lugar da descarga. O manganês, que a lnglaterra cada vez  mais
               compra ao Brasil, vem de Minas até à Marítima em estrada de ferro; daí é conduzido em batelões
               e saveiros até às ilhas Bárbaras e da Conceição, onde fica em depósito.
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