Page 89 - 3M A ALMA ENCANTADORA DAS RUAS
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Quando chega vapor, de novo removem o pedregulho para os saveiros e de lá para o porão dos
               navios.  Esse  trabalho  é  contínuo,  não  tem  descanso.  Os  depósitos  cheios,  sem  trabalho  de
               carga para os navios, os trabalhadores atiram-se à pedreira, à rocha viva. Trabalha-se dez horas
               por dia com pequenos intervalos para as refeições, e ganha-se cinco mil réis. Há, além disso, o
               desconto da comida, do barracão onde dormem, mil e quinhentos; de modo que o ordenado da
               totalidade é de oito mil réis, Os homens gananciosos aproveitam então o serviço da noite, que é
               pago  até  de  manhã  por  três  mil  e  quinhentos  e  até  meia-noite  pela  metade  disso,  tendo
               naturalmente, o desconto do pão, da carne e do café servido durante o labor,


               É uma espécie de gente essa que serve às descargas do carvão e do minério e povoa as ilhas
               industriais de baía, seres embrutecidos, apanhados a dedo, incapazes de ter idéias. São quase
               todos  portugueses  e  espanhóis  que  chegam  da  aldeia,  ingênuos.  Alguns  saltam  da  proa  do
               navio para o saveiro do trabalho tremendo, outros aparecem  pela Marítima sem saber o que fazer
               e são arrebanhados pelos agentes. Só têm um instinto: juntar dinheiro, a ambição voraz que os
               arrebenta de encontro às pedras inutilmente. Uma vez apanhados pelo mecanismo de aços, ferros
               e carne humana, uma vez utensílio apropriado ao andamento da máquina, tornam- se autômatos
               com a teimosia de objetos movidos a vapor. Não têm nervos, têm molas; não têm cérebros, têm
               músculos hipertrofiados. O superintende do serviço berra, de vez em quando:


               – Isto é para quem quer! Tudo aqui é livre!  As coisas estão muito ruins, sujeitemo-nos. Quem não
               quiser é livre!


               Eles  vieram  de  uma  vida  de  geórgicas  paupérrimas.  Têm  a  saudade  das  vinhas,  dos  pratos
               suaves, o pavor de voltar pobres e, o que é mais, ignoram absolutamente  a cidade, o Rio; limitam
               o Brasil às ilhas do trabalho, quando muito aos recantos primitivos de  Niterói.  Há homens que,
               anos depois de desembarcar, nunca pisaram no Rio e outros que, quase uma existência na ilha,
               voltaram para a terra com algum dinheiro e a certeza da morte.


               Vivem  quase  nus.  No  máximo,  uma  calça  em  frangalhos  e  camisa  de  meia.  Os  seus
               conhecimentos reduzem-se à marreta, à pá, ao dinheiro; o dinheiro que a pá levanta para o bem-
               estar dos capitalistas poderosos; o dinheiro, que os recurva em esforços desesperados, lavados
               de  suor,  para que  os  patrões  tenham  carros  e  bem-estar.  Dias  inteiros de  bote,  estudando a
               engrenagem dessa vida esfalfante, saltando nos paióis ardentes navios e nas ilhas inúmeras,
               esses  pobres  entes  fizeram-me  pensar  num  pesadelo  de  Wells,  a  realidade  da  História  dos
               Tempos Futuros, o pobre a trabalhar para os sindicatos, máquina incapaz de poder viver de outro
               modo,  aproveitada  e  esgotada.  Quando  um  deles  é  despedido,  com  a  lenta  preparação  das
               palavras sórdidas dos feitores, sente um tão grande vácuo, vê-se de tal forma só, que vai rogar
               outra vez para que o admitam.


               À  proporção  que  eu  os  interrogava  e  o  sol  acendia  labaredas  por  toda  a  ilha,  a  minha
               sentimentalidade  ia  fenecendo.  Parte  dos  trabalhadores  atirou-se  à  pedreira,  rebentando  as
               pedras. As marretas caíam descompassadamente em retintins metálicos nos blocos  enormes. Os
               outros perdiam-se nas rumas de manganês, agarrando os pedregulhos pesados com as mãos. As
               pás raspavam o chão, o piquiri caía pesadamente nos vagonetes, outros puxavam-nos até a beira
               d’água, onde as tinas de bronze os esvaziavam nos saveiros.


               Durante horas, esse trabalho continuou com uma regularidade alucinante. Não se distinguiam bem
               os seres das pedras do manganês: o raspar das pás replicava ao bater das marretas, e ninguém
               conversava, ninguém falava! A certa hora do dia veio a comida. Atiraram-se aos pratos de folha,
               onde, em água quente, boiavam vagas batatas e vagos pedaços de carne, e um momento só se
               ouviu o sôfrego sorver e o mastigar esfomeado.
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