Page 86 - 3M A ALMA ENCANTADORA DAS RUAS
P. 86

Aqueles  seres  ligavam-se  aos  guinchos;  eram  parte  da  máquina;  agiam  inconscientemente.
               Quinze  minutos  depois  de  iniciado  o  trabalho,  suavam  arrancando  as  camisas.  Só  os  negros
               trabalhavam de tamancos. E não falavam, não tinham palavras inúteis. Quando a ruma estava
               feita, erguiam a cabeça e esperavam a nova carga. Que fazer? Aquilo tinha que ser até às 5 da
               tarde!


               Desci ao porão. Uma atmosfera de caldeira sufocava. Era as correntes caírem do braço de ferro
               um dos oito homens precipitava-se, alargava-as, os outros puxavam os sacos.


               – Eh! lá!


               De novo havia um rolar de ferros no convés, as correntes subiam enquanto eles arrastavam os
               sacos. Do alto a claridade caía fazendo uma bolha de luz, que se apagava nas trevas  dos cantos.
               E  a  gente,  olhando  para  cima,  via  encostados  cavalheiros  de  pijama  e  bonezinho,  com ar de
               quem descansa do banho a apreciar a faina alheia. Às vezes, as correntes ficavam um pouco alto.
               Eles agarravam-se às paredes de ferro com os passos vacilantes entre os sacos e, estendendo o
               tronco nu e suarento, as suas mãos preênseis puxavam a carga em esforços titânicos.


               – Eh! lá!


               Na embarcação, fora, os mesmos movimentos, o mesmo gasto de forças e de tal forma regular
               que  em  pouco  eram  movimentos  correspondentes,  regulados  pela  trepidação  do  guincho,  os
               esforços dos que se esfalfavam no porão e dos que se queimavam ao sol.


               Até horas tardes da manhã trabalharam assim, indiferentes aos botes, às lanchas, à animação
               especial do navio. Quando chegou a vez da comida, não se reuniram. Os do porão ficaram por
               lá mesmo, com a respiração intercortada, resfolegando, engolindo o pão, sem vontade.


               Decerto  pela  minha  face  eles  compreenderam  que  eu  os  deplorava.  Vagamente,  o  primeiro
               falou; outro disse-me qualquer coisa e eu ouvi as idéias daqueles corpos que o trabalho rebenta.
               A principal preocupação desses entes são as firmas dos estivadores. Eles as têm de cor, citam de
               seguida, sem errar uma: Carlos Wallace, Melo e François, Bernardino Correia Albino, Empresa
               Estivadora, Picasso e C., Romão Conde e C., Wilson, Sons, José Viegas Vaz, Lloyd Brasileiro,
               Capton Jones. Em cada uma dessas casas o terno varia de número e até de vencimentos, como
               por exemplo –o Lloyd, que paga sempre menos que  qualquer  outra empresa.


               Os homens com quem falava têm uma força de vontade incrível. Fizeram com o próprio esforço
               uma classe, impuseram-na. Há doze anos não havia malandro que, pegado na Gamboa, não se
               desse  logo  como  trabalhador  de  estiva.  Nesse  tempo  não  havia  a  associação,  não  havia  o
               sentimento de classe e os pobres estrangeiros  pegados  na Marítima trabalhavam por três mil
               réis dez horas de sol a sol. Os operários reuniram-se. Depois da revolta, começou a se fazer sentir
               o elemento brasileiro e, desde então, foi uma longa e pertinaz conquista. Um  homem preso, que
               se diga da estiva, é, horas depois, confrontado com um sócio da União, tem que apresentar o seu
               recibo de mês. Hoje, estão todos ligados, exercendo uma mútua policia para a moralização da
               classe.  A  União  dos  Operários  Estivadores  consegue,  com  uns  estatutos  que  a  defendem
               habilmente, o seu nobre fim. Os defeitos da raça, as disputas, as rusgas são consideradas penas;
               a  extinção  dos  tais  pequenos  roubos,  que  antigamente  eram  comuns,  merece  um  cuidado
               extremado da União, e todos os sócios, tendo como diretores Bento José
   81   82   83   84   85   86   87   88   89   90   91