Page 9 - 3M A ALMA ENCANTADORA DAS RUAS
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é no Largo do Estácio inteiramente diverso. As botas são de bico fino, os fatos em geral justos, o
lenço no bolso de dentro do casaco, o cabelo à meia cabeleira com muito óleo. Se formos ao
Largo do Depósito, esse mesmo rapaz usará lenço de seda preta, forro na gola do paletot,
casaquinho curto e calças obedecendo ao molde corrente na navegação aérea – calças à balão.
Esses três rapazes da mesma idade, filhos da mesma gente honrada, às vezes até parentes, não
há escolas, não há contactos passageiros, não há academias que lhes tranformem o gosto por
certa cor de gravatas, a maneira de comer, as expressões, as idéias – porque cada rua tem um
stock especial de expressões, de idéias e de gostos. A gente de Botafogo vai às "primeiras" do
Lírico, mesmo sem ter dinheiro. A gente de Haddock Lobo tem dinheiro mas raramente vai ao
Lírico. Os moradores da Tijuca aplaudem Sarah Bernhardt como um prodígio. Os moradores da
Saúde amam enternecidamente o Dias Braga. As meninas das Laranjeiras valsam ao som das
valsas de Strauss e de Berger, que lembram os cassinos da Riviera e o esplendor dos kursaals.
As meninas dos bailes de Catumbi só conhecem as novidades do senhor Aurélio Cavalcante. As
conversas variam, o amor varia, os ideais são inteiramente outros, e até o namoro, essa
encantadora primeira fase do eclipse do casamento, essa meia ação da simpatia que se funde em
desejo, é abolutamente diverso. Em Botafogo, à sombra das árvores do parque ou no grande
portão, Julieta espera Romeu, elegante e solitária; em Haddock Lobo, Julieta garruleia em bandos
pela calçada; e nas casas humildes da Cidade Nova, Julieta, que trabalhou todo o dia pensando
nessa hora fugace, pende à janela o seu busto formoso...
Oh! sim, a rua faz o indivíduo, nós bem o sentimos. Um cidadão que tenha passado metade da
existência na Rua do Pau Ferro não se habitua jamais à Rua Marquês de Abrantes! Os intelectuais
sentem esse tremendo efeito do ambiente, menos violentamente, mas sentem. Eu conheci um
elegante barão da monarquia, diplomata em perpétua disponibilidade, que a necessidade forçara
a aceitar de certo proprietário o quarto de um cortiço da Rua Bom Jardim. O pobre homem, com
as suas poses à Brummell, sempre de monóculo entalado, era o escândalo da rua. Por mais que
saudasse as damas e cumprimentasse os homens, nunca ninguém se lembrava de o tratar senão
com desconfiança assustada. O barão sentia-se desesperado e resumira a vida num gozo único:
sempre que podia, tomava o bonde de Botafogo, acendia um charuto, e ia por ali altivo, airoso,
com a velha redingote abotoada, a "caramela" de cristal cintilante... Estava no seu bairro. Até
parece, dizia ele, que as pedras me conhecem!
As pedras! As pedras são a couraça da rua, a resistência que elas apresentam ao novo transeunte.
Refleti que nunca pisastes pela primeira vez uma rua de arrabalde sem que o vosso passo fosse
hesitante como que, inconscientemente, se habituando ao terreno; refleti nessas coisas sutis que
a vida cria, e haveis de compreender então a razão por que os humildes limitam todo o seu mundo
à rua onde moram, e por que certos tipos, os tipos populares, só o são realmente em determinados
quarteirões.
As ruas são tão humanas, vivem tanto e formam de tal maneira os seus habitantes, que há até
ruas em conflito com outras. Os malandros e os garotos de uma olham para os de outra como
para inimigos. Em 1805, há um século, era assim: os capoeiras da Praia não podiam passar por
Santa Luzia. No tempo das eleições mais à navalha que à pena, o Largo do Machadinho e a
Rua Pedro Américo eram inimigos irreconciliáveis. Atualmente a sugestão é tal que eles se
intitulam povo. Há o povo da Rua do Senado, o povo da Travessa do mesmo nome, o povo de
Catumbi. Haveis de ouvir, à noite, um grupo de pequenos valentes armados de vara: