Page 11 - 3M A ALMA ENCANTADORA DAS RUAS
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– Ponho-o no olho da rua! brada o pai ao filho no auge da fúria.
Aí está a rua como expressão da maior calamidade.
– Você está em casa, venha para a rua se é gente!
Aí temos a rua indicando sítio livre para a valentia a substituir o campo de torneio medieval.
– É mais deslavado que as pedras da rua!
Frase em que se exprime uma sem-vergonhice inconcebível.
– É mais velho que uma rua!
Conceito talvez errado porque há ruas que morrem moças.
Às vezes até a rua é a arma que fere e serve de elogio conforme a opinião que dela se tem.
– Ah! minha amiga! Meu filho é muito comportado. Já vai à rua sozinho...
– Ah! meninas, o filho de d. Alice está perdido! Pois se até anda sozinho na rua!
E a rua, impassível, é o mistério, o escândalo, o terror...
Os políticos vivem no meio da rua aqui, na China, em Tombuctu, na França; os presidentes de
república, os reis, os papas, no pavor de uma surpresa da rua – a bomba, a revolta; os chefes
de polícia são os alucinados permanentes das ruas; todos quantos querem subir, galgar a inútil
e movediça montanha da glória, anseiam pelo juízo da rua, pela aprovação da via pública, e há na
patologia nervosa uma vasta parte em que se trata apenas das moléstias produzidas pela rua,
desde a neurastenia até à loucura furiosa. E que a rua chega a ser a obsessão em que se
condensam todas as nossas ambições. O homem, no desejo de ganhar a vida com mais
abundância ou maior celebridade, precisava interessar à rua. Começou pois fazendo discursos
em plena ágora, discursos que, desde os tempos mais remotos aos meetings contemporâneos
da estátua de José Bonifácio, falam sempre de coisas altivas, generosas e nobres. Um belo dia,
a rua proclamou a excelente verdade: que as palavras leva-as o vento. Logo, nós assustados,
imaginamos o homem-sandwich, o cartaz ambulante; mandamos pregar-lhe, enquanto dorme,
com muita goma e muita ingenuidade, os cartazes proclamando a melhor conserva, o doce mais
gostoso, o ideal político mais austero, o vinho mais generoso, não só em letras impressas mas
com figuras alegóricas, para poupar-lhe o trabalho de ler, para acariciar-lhe a ignorância, para
alegrá-la. Como se não bastassem o cartaz, a lanterna mágica, o homem-sandwich,
desveladamente, aos poucos, resolvemos compor-lhe a história e fizemos o jornal – esse
formidável folhetim-romance permanente, composto de verdades, mentiras, lisonjas, insultos e da
fantasia dos Gaboriau que somos todos nós...