Page 10 - 3M A ALMA ENCANTADORA DAS RUAS
P. 10

– Vamos embora! O povo da Travessa está conosco.


               É a Rua do Senado que, aliada à Travessa, vai sovar a Rua Frei Caneca...


               Como outrora os homens, mais ou menos notáveis, tomavam o nome da cidade onde tinham
               nascido  –  Tales  de  Mileto,  Luciano  de  Samosata,  Epicarmo  de  Alexandria  –  os  chefes  da
               capadoçagem juntam hoje ao nome de batismo o nome da sua rua. Há o José do Senado,  o Juca
               da Harmonia, o Lindinho do Castelo, e ultimamente, nos fatos do crime, tornaram-se célebres dois
               homens, Carlito e Cardosinho, só temidos em toda a cidade,  cheia  de Cardosinhos e de Carlitos,
               porque eram o Carlito e o Cardosinho da Saúde. Direis que é uma observação puramente local?
               Não, cem vezes não! Em Paris, a Ville-Lumière, os bandos de assassinos tomam freqüentemente
               o  nome  da  rua  onde  se  organizaram;  em  Londres  há  ruas  dos  bairros  trágicos  com  esse
               predomínio, e na própria história de Bizâncio haveis de encontrar ruas tão guerreiras que os seus
               habitantes as juntavam ao nome como um distintivo.


               E assim os tipos populares.


               Tive o prazer de conhecer dois desses tipos, em que mais vivamente se exteriorizava  a influência
               psicológica da rua: o Pai da Criança e a Perereca.


               O Pai da Criança estava deslocado, na decadência. Esse ser  repugnante nascera como uma
               depravação da Rua do Ouvidor. Quando o vi doente, nas tascas da Rua Frei Caneca, como já não
               estava na sua rua, não era mais notável. Os garotos já não riam dele, ninguém o seguia, e o
               nojento sujeito conversava nas bodegas, como qualquer mortal, da gatunice dos governos. Só
               fui descobrir a sua celebridade quando o vi em plena Ouvidor, cheio de fitas, vaiado, cuspindo
               insolências, inconcebível de descaro e de náusea. A Perereca, ao contrário. Na Rua do Ouvidor
               seria apenas uma preta velha. Na Rua Frei Caneca era o regalo, o delírio, a extravagância. Os
               malandrins corriam-lhe ao encalço atirando-lhe pedras, os negociantes chegavam às portas, todas
               as janelas iluminavam-se de gargalhadas. E por quê? Porque esses tipos são o riso das ruas e
               assim como não há duas pessoas que riam do mesmo modo não há duas ruas cujo riso seja o
               mesmo.


               Se  a  rua  é  para  o  homem  urbano  o  que  a  estrada  foi  para  o  homem  social,  é  claro  que  a
               preocupação  maior,  a  associada  a  todas  as  outras  idéias  do  ser  das  cidades,  é  a  rua.  Nós
               pensamos sempre na rua. Desde os mais tenros anos ela resume para o homem todos  os ideais,
               os  mais  confusos,  os mais  antagônicos,  os  mais  estranhos,  desde  a  noção  de liberdade e de
               difamação – idéias gerais – até a aspiração de dinheiro, de alegria e de amor, idéias particulares.
               Instintivamente, quando a criança começa a engatinhar, só tem um desejo: ir para a rua! Ainda não
               fala e já a assustam: se você for para a rua encontra o bicho!  Se você sair apanha palmadas!
               Qual!  Não há nada!  É pilhar um portão aberto que o petiz não se lembra mais de bichos nem de
               pancadas!


               Sair só é a única preocupação das crianças até uma certa idade. Depois continuar a sair só. E
               quando  já  para  nós  esse  prazer  se  usou,  a  rua  é  a  nossa  própria  existência.  Nela  se  fazem
               negócios, nela se fala mal do próximo, nela mudam as idéias e as convicções, nela surgem as
               dores e os desgostos, nela sente o homem a maior emoção.


               Quando se encontra o amor
               Na rua, sem o saber...
   5   6   7   8   9   10   11   12   13   14   15