Page 4 - 3M A ALMA ENCANTADORA DAS RUAS
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tão risonha, que parece papaguear


               com o céu e com os anjos...


               A rua faz as celebridades e as revoltas, a rua criou um tipo universal, tipo que vive em cada aspecto
               urbano, em cada detalhe, em cada praça, tipo diabólico que tem dos gnomos  e dos silfos das
               florestas, tipo proteiforme, feito de risos e de lágrimas, de patifarias e de crimes irresponsáveis, de
               abandono e de inédita filosofia, tipo esquisito e ambíguo com saltos de felino e risos de navalha,
               o prodígio de uma criança mais sabida e cética que os velhos de setenta invernos, mas cuja
               ingenuidade é perpétua, voz que dá o apelido fatal aos potentados e nunca teve preocupações,
               criatura que pede como se fosse natural pedir, aclama  sem interesse, e pode rir, francamente,
               depois de ter conhecido todos os males da cidade, poeira d’ouro que se faz lama e torna a ser
               poeira – a rua criou o garoto!


               Essas qualidades nós as conhecemos vagamente. Para compreender a psicologia da rua não
               basta gozar-lhe as delícias como se goza o calor do sol e o lirismo do luar. É preciso ter espírito
               vagabundo, cheio de curiosidades malsãs e os nervos com um perpétuo  desejo incompreensível,
               é preciso ser aquele que chamamos flâneur e praticar o mais interessante dos esportes – a arte
               de flanar. É fatigante o exercício?


               Para os iniciados sempre foi grande regalo. A musa de Horácio, a pé, não fez outra coisa nos
               quarteirões de Roma. Sterne e Hoffmann proclamavam-lhe a profunda virtude, e Balzac  fez todos
               os  seus  preciosos  achados  flanando.  Flanar!  Aí  está  um  verbo  universal  sem  entrada  nos
               dicionários, que não pertence a nenhuma língua! Que significa flanar? Flanar é ser vagabundo e
               refletir, é ser basbaque e comentar, ter o vírus da observação ligado ao da vadiagem. Flanar é ir
               por aí, de manhã, de dia, à noite, meter-se nas rodas da populaça, admirar o menino da gaitinha
               ali à esquina, seguir com os garotos o lutador do Cassino vestido de turco, gozar nas praças os
               ajuntamentos defronte das lanternas mágicas, conversar com os cantores de modinha das alfurjas
               da Saúde, depois de ter ouvido dilettanti de casaca aplaudirem o maior tenor do Lírico numa ópera
               velha e má; é ver os bonecos pintados a giz nos muros das casas, após ter acompanhado um
               pintor  afamado  até  a  sua  grande  tela  paga  pelo  Estado;  é  estar  sem  fazer  nada  e  achar
               absolutamente  necessário  ir  até  um  sítio  lôbrego,  para  deixar  de  lá  ir,  levado  pela  primeira
               impressão, por um dito que faz sorrir, um perfil que interessa, um par jovem cujo riso de amor
               causa inveja.


               É vagabundagem? Talvez. Flanar é a distinção de perambular com inteligência. Nada como o inútil
               para ser artístico. Daí o desocupado flâneur ter sempre na mente dez mil coisas necessárias,
               imprescindíveis, que podem ficar eternamente adiadas. Do alto  de uma  janela como Paul Adam,
               admira o caleidoscópio da vida no epítome delirante que é a rua; à porta do café, como Poe no
               Homem da Multidões, dedica-se ao exercício de adivinhar as profissões, as preocupações e até
               os crimes dos transeuntes. É uma espécie de secreta à  maneira  de Sherlock Holmes, sem os
               inconvenientes dos secretas nacionais. Haveis de encontrá-lo numa bela noite numa noite muito
               feia. Não vos saberá dizer donde vem, que está a fazer, para onde vai. Pensareis decerto estar
               diante de um sujeito fatal? Coitado! O flâneur é o bonhomme possuidor de uma alma igualitária e
               risonha,  falando  aos  notáveis  e  aos  humildes  com  doçura,  porque  de  ambos  conhece  a  face
               misteriosa e cada vez mais se convence da inutilidade da cólera e da necessidade do perdão.


               O flâneur é ingênuo quase sempre. Pára diante dos rolos, é o eterno "convidado do sereno" de
               todos os bailes, quer saber a história dos boleiros, admira-se simplesmente, e conhecendo cada
               rua,  cada beco,  cada  viela,  sabendo-lhe  um pedaço  da história,  como  se sabe a  história dos
               amigos (quase sempre mal), acaba com a vaga idéia de que todo o espetáculo da cidade foi
               feito especialmente para seu gozo próprio. O balão que sobe ao meio-dia no Castelo, sobe para
               seu prazer; as bandas de música tocam nas praças para alegrá-lo; se num beco perdido há uma
               serenata com violões chorosos, a serenata e os violões estão ali para diverti-lo. E de tanto ver que
               os outros quase não podem entrever, o flâneur reflete. As observações foram guardadas na placa
               sensível do cérebro; as frases, os ditos, as cenas vibram-lhe no cortical. Quando o flâneur deduz,
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