Page 6 - 3M A ALMA ENCANTADORA DAS RUAS
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Vede a Rua do Ouvidor. É a fanfarronada em pessoa, exagerando, mentindo, tomando parte em
tudo, mas desertando, correndo os taipais das montras à mais leve sombra de perigo. Esse
beco inferno de pose, de vaidade, de inveja, tem a especialidade da bravata. E fatalmente
oposicionista, criou o boato, o "diz-se..." aterrador e o "fecha-fecha" prudente. Começou por
chamar-se Desvio do Mar. Por ela continua a passar para todos os desvios muita gente boa. No
tempo em que os seus melhores prédios se alugavam modestamente por dez mil réis, era a Rua
do Gadelha. Podia ser ainda hoje a Rua dos Gadelhas, atendendo ao número prodigioso de poetas
nefelibatas que a infestam de cabelos e de versos. Um dia resolveu chamar-se do Ouvidor sem
que o senado da câmara fosse ouvido. Chamou-se como calunia, e elogia, como insulta e aplaude,
porque era preciso denominar o lugar em que todos falam de lugar do que ouve; e parece que
cada nome usado foi como a antecipação moral de um dos aspectos atuais dessa irresponsável
artéria da futilidade.
A Rua da Misericórdia, ao contrário, com as suas hospedarias lôbregas, a miséria, a desgraça das
casas velhas e a cair, os corredores bafientos, é perpetuamente lamentável. Foi a primeira rua do
Rio. Dela partimos todos nós, nela passaram os vice-reis malandros, os gananciosos, os escravos
nus, os senhores em redes; nela vicejou a imundície, nela desabotoou a flor da influência jesuítica.
Índios batidos, negros presos a ferros, domínio ignorante e bestial, o primeiro balbucio da cidade
foi um grito de misericórdia, foi um estertor, um ai! tremendo atirado aos céus. Dela brotou a
cidade no antigo esplendor do Largo do Paço, dela decorreram, como de um corpo que sangra,
os becos humildes e os coalhos de sangue, que são as praças, ribeirinhas do mar. Mas, soluço
de espancado, primeiro esforço de uma porção de infelizes, ela continuou pelos séculos afora
sempre lamentável, e tão augustiosa e franca e verdadeira na sua dor que os patriotas lisonjeiros
e os governos, ninguém, ninguém se lembrou nunca de lhe tirar das esquinas aquela muda prece,
aquele grito de mendiga velha: – Misericórdia!
Há ruas que mudam de lugar, cortam morros, vão acabar em certos pontos que ninguém dantes
imaginara – a Rua dos Ourives; há ruas que, pouco honestas no passado, acabaram tomando
vergonha – a da Quitanda. Essa tinha mesmo a mania de mudar de nome. Chamou-se do Açougue
Velho, do lnácio Castanheira, do Sucusarrará, do Tomé da Silva, que sei eu? Até mesmo Canto
do Tabaqueiro. Acabou Quitanda do Marisco, mas, como certos indivíduos que organizam o nome
conforme a posição que ocupam, cortou o marisco e ficou só Quitanda. Há ruas, guardas
tradicionais da fidalguia, que deslizam como matronas conservadoras – a das Laranjeiras; há ruas
lúgubres, por onde passais com um arrepio, sentindo o perigo da morte – o Largo do Moura por
exemplo. Foi sempre assim. Lá existiu o Necrotério e antes do Necrotério lá se erguia a Forca.
Antes da autópsia, o enforcamento. O velho largo macabro, com a alma de Tropmann e de Jack,
depois de matar, avaramente guardou anos e anos, para escalpelá-los, para chamá-los, para
gozá-los, todos os corpos dos desgraçados que se suicidam ou morrem assassinados. Tresanda
a crime, assusta. A Prainha também. Mesmo hoje, aberta, alargada com prédios novos e a
trepidação contínua do comércio, há de vos dar uma impressão de vago horror. À noite são mais
densas as sombras, as luzes mais vermelhas, as figuras maiores. Por que terá essa rua um
aspecto assim? Oh! Porque foi sempre má, porque foi sempre ali o Aljube, ali padeceram os negros
dos três primeiros trapiches do sal, porque também ali a forca espalhou a morte!
Há entretanto outras ruas, que nascem íntimas, familiares, incapazes de dar um passo sem que
todas as vizinhas não saibam. As ruas de Santa Teresa estão nestas condições. Um cavalheiro
salta no Curvelo, vai a pé até o França, e quando volta já todas as ruas perguntam que deseja ele,
se as suas tenções são puras e outras impertinências íntimas. Em geral, procura-se o mistério da
montanha para esconder um passeio mais ou menos amoroso. As ruas de Santa Teresa, é
descobrir o par e é deitar a rir proclamando aos quatro ventos o acontecimento. Uma das ruas,
mesmo, mais leviana e tagarela do que as outras, resolveu chamar-se logo Rua do Amor, e a Rua
do Amor lá está na freguesia de S. José. Será exatamente um lugar escolhido pelo Amor, deus
decadente? Talvez não. Há também na freguesia do Engenho Velho uma rua intitulada Feliz
Lembrança e parece que não a teve, segundo a opinião respeitável da poesia anônima:
Na Rua Feliz Lembrança
Eu escapei por um triz
De ser mandado à tábua.