Page 14 - 3M A ALMA ENCANTADORA DAS RUAS
P. 14
Os artistas modernos já não se limitam a exprimir os aspectos proteiformes da rua, a analisar traço
por traço o perfil físico e moral de cada rua. Vão mais longe, sonham a rua ideal, como sonharam
um mundo melhor. Williams Morris, por exemplo, imaginou nas Novelas de parte alguma a rua
socialista e rara, com edifícios magníficos, sem mendigos e sem dinheiro. Rimbaud, nas
Illuminations, teve a idéia da rua babélica, reproduzindo nos edifícios, sob o céu cinzento, todas
as maravilhas clássicas da arquitetura. Bellamy, no Locking Bockward, já sonhava o agrupamento
dos grandes armazéns; e hoje, entre essas ruas de sonho, que Gustavo Khan considera as ruas
utópicas e que talvez se tornem realidade um dia, é o estranho e infernal sulco descrito por Wells
na História dos tempos futuros, rua em que tudo dependerá de sindicatos formidáveis, em que
tudo será elétrico, em que os homens, escravos de meia dúzia, serão como os elos de uma
mesma corrente arrastados pelo trabalho através dos casarões.
Mas, a quem não fará sonhar a rua? A sua influência é fatal na palheta dos pintores, na alma dos
poetas, no cérebro das multidões. Quem criou o reclamo? A rua! Quem inventou a caricatura! A
rua! Onde a expansão de todos os sentimentos da cidade? Na rua! Por isso para dar a expressão
da dor funda, o grande poeta Bilac fez um dia:
A Avenida assombrada e triste da saudade
Onde vem passear a procissão chorosa
Dos órfãos do carinho e da felicidade.
E certo poeta árabe, reconhecendo com a presciência dos vates que só a rua nos pode dar a
expressão do sofrimento absoluto como da alegria completa, escreveu a celebrada Praça do
riso ao nascer da aurora; o riso de cristal das crianças, o riso perlado das mulheres, o riso grave
dos homens a formar um conjunto de tanta harmonia que as árvores também riam no canto dos
pássaros, e a própria umbela azul do céu se estriava d’ouro no imenso riso do sol..
Neste elogio, talvez fútil, considerei a rua um ser vivo, tão poderoso que consegue modificar o
homem insensivelmente e fazê-lo o seu perpétuo escravo delirante, e mostrei mesmo que a rua
é o motivo emocional da arte urbana mais forte e mais intenso. A rua tem ainda um valor de sangue
e de sofrimento: criou um símbolo universal. Há ainda uma rua, construída na imaginação e na
dor, rua abjeta e má, detestável e detestada, cuja travessia se faz contra a nossa vontade, cujo
trânsito é um doloroso arrastar pelo enxurro de uma cidade e de um povo. Todos acotovelam-se
e vociferam aí, todos, vindos da Rua da Alegria ou da Rua da Paz, atravessando as betesgas do
Saco do Alferes ou descendo de automóvel dos bairros civilizados, encontram-se aí e aí se
arrastam, em lamentações, em soluços, em ódio à vida e ao Mundo. No traçado das cidades ela
não se ostenta com as suas imprecações e os seus rancores. É uma rua esconsa e negra, perdida
na treva, com palácios de dor e choupanas de pranto, cuja existência se conhece não por um
letreiro à esquina, mas por uma vaga apreensão, um irredutível sentimento de angústia, cuja
travessia não se pode jamais evitar. Correi os mapas de Atenas, de Roma, de Nínive ou de
Babilônia, o mapa das cidades mortas. Termas, canais, fontes, jardins suspensos, lugares onde
se fez negócio, onde se amou, lugares onde se se cultuaram os deuses – tudo desapareceu. Olhai
o mapa das cidades modernas. De século em século a transformação é quase radical. As ruas
são perecíveis como os homens. A outra, porém, essa horrível rua de todos conhecida e odiada,
pela qual diariamente passamos, essa é eterna como o medo, a infâmia, a inveja. Quando
Jerusalém fulgia no seu máximo esplendor, já ela lá existia. Enquanto em Atenas artistas e
guerreiros recebiam ovações, enquanto em Roma a multidão aplaudia os gladiadores triunfais e
os césares devassos, na rua aflitiva cuspinhava o opróbrio e chorava a inocência. Cartago tinha
uma rua assim, e ainda hoje Paris, New York, Berlim a têm, cortando a sua alegria, empanando o
seu brilho, enegrecendo todos os triunfos e todas as belezas. Qual de vós não quebrou,
inesperadamente, o ângulo em arestas dessa rua? Se chorastes, se sofrestes a calúnia, se vos
sentistes ferido pela maledicência, podereis ter a certeza de que entrastes na obscura via! Ah! Não
procureis evita-la! Jamais o conseguireis. Quanto mais se procura dela sair mais dentro dela se
sofre. E não espereis nunca que o mundo