Page 7 - 3M A ALMA ENCANTADORA DAS RUAS
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Ai! que lembrança infeliz
               Tal nome pôr nesta rua!


               Há ruas que têm as blandícias de Goriot e de Shylock para vos emprestar a juro, para esconder
               quem pede e paga o explorador com ar humilde. Não vos lembrais da Rua do Sacramento, da rua
               dos penhores? Uma aragem fina e suave encantava sempre o ar. Defronte à igreja, casas velhas
               guardavam pessoas tradicionais. No Tesouro, por entre as grades de ferro, uma ou outra cara
               desocupada. E era ali que se empenhavam as jóias, que pobres entes angustiados iam levar os
               derradeiros valores com a alma estrangulada de soluços; era ali que refluíam todas as paixões e
               todas as tristezas, cujo lenitivo dependesse de dinheiro...

               Há ruas oradoras, ruas de meeting – o Largo do Capim que assim foi sempre, o Largo de S.
               Francisco;  ruas  de  calma  alegria  burguesa,  que  parecem  sorrir  com  honestidade  –  a  Rua  de
               Haddock Lobo; ruas em que não se arrisca a gente sem volver os olhos para trás a ver se nos
               vêem –a Travessa da Barreira; ruas melancólicas, da tristeza dos poetas; ruas de  prazer suspeito
               próximo do centro urbano e como que dele muito afastadas; ruas de paixão romântica, que pedem
               virgens loiras e luar.


               Qual de vós já passou a noite em claro ouvindo o segredo de cada rua? Qual de vós já sentiu o
               mistério, o sono, o vício, as idéias de cada bairro?


               A alma da rua só é inteiramente sensível a horas tardias. Há trechos em que  a gente passa como
               se fosse empurrada, perseguida, corrida – são as ruas em que os passos reboam, repercutem,
               parecem crescer, clamam, ecoam e, em breve, são outros tantos passos ao nosso encalço. Outras
               que se envolvem no mistério logo que as sombras descem – o Largo de Paço. Foi esse largo o
               primeiro esplendor da cidade. Por ali passaram, na pompa dos pálios e dos baldaquins d’ouro e
               púrpura, as procissões do Enterro, do Triunfo, do Senhor dos Passos; por ali, ao lado da Praia
               do Peixe, simples vegetação de palhoças, o comércio agitava as suas primeiras elegâncias e as
               suas ambições mais fortes. O largo, apesar das reformas, parece guardar a tradição de dormir
               cedo. À noite, nada o reanima, nada o levanta. Uma grande revolução morre no seu bojo como
               um suspiro; a luz leva a lutar com a treva; os próprios revérberos parece dormitarem, e as sombras
               que por ali deslizam são trapos da existência almejando o fim próximo, ladrões sem pousada,
               imigrantes esfaimados... Deixai esse largo, ide às ruelas da Misericórdia, trechos da cidade que
               lembram o Amsterdão sombrio de Rembrandt. Há homens em esteiras, dormindo na rua como se
               estivessem em casa. Não nos admiremos.  Somos reflexos. O Beco da Música ou o Beco da
               Fidalga reproduzem a alma das ruas de Nápoles, de Florença, das ruas de Portugal, das ruas da
               África, e até, se acreditarmos na fantasia de Heródoto, das ruas do antigo Egito. E por quê? Porque
               são ruas da proximidade do mar, ruas viajadas, com a visão de outros horizontes. Abri uma dessas
               pocilgas que são a parte do seu organismo. Haveis de ver chineses bêbados de ópio, marinheiros
               embrutecidos pelo álcool, feiticeiras ululando canções sinistras, toda a estranha vida dos portos
               de mar. E esses becos, essas betesgas têm a perfídia dos oceanos, a miséria das imigrações, e
               o vício, o grande vício do mar e das colônias...


               Se as ruas são entes vivos, as ruas pensam, têm idéias, filosofia e religião. Há ruas inteiramente
               católicas, ruas protestantes, ruas livres-pensadoras e até ruas sem religião. Trafalgar Square, dizia
               o mestre humorista Jerome, não tem uma opinião teológica definitiva. O mesmo se pode dizer da
               Praça da Concórdia de Paris ou da Praça Tiradentes. Há criatura mais sem miolos que o Largo
               do Rocio? Devia ser respeitável e austero. Lá, Pedro I, trepado num belo cavalo e com um belo
               gesto, mostra aos povos a carta da independência, fingindo  dar um  grito que nunca deu. Pois
               bem: não há sujeito mais pândego e menos sério do que o velho ex-Largo do Rocio. Os seus
               sentimentos  religiosos  oscilam  entre  a  depravação  e  a  roleta.  Felizmente,  outras redimem  a
               sociedade de pedra e cal, pelo seu culto e o seu fervor. A Rua Benjamin Constant está neste caso,
               é entre nós um tremendo exemplo de confusão religiosa. Solene, grave, guarda três templos, e
               parece  dizer  com  circunspecção  e  o  ar  compenetrado  de  certos  senhores  de  todos  nós
               conhecidos:


               – Faço as obras do Coração de Jesus, creio em Deus, nas orações, nos bentinhos e só não sou
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