Page 13 - 3M A ALMA ENCANTADORA DAS RUAS
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Vista Alegre é rua morta
               A Formosa é feia e brava
               A Rua Direita é torta
               A do Sabão não se lava...


               Toda a psicologia das construções e do alinhamento em quatro versos! A rua chega a preocupar
               os loucos. Nos hospícios, onde esses cavalheiros andam doidos por se ver cá fora, encontrei
               planos de ruas ideais, cantores de rua, e um deles mesmo chegou a entregar-me um longo poema
               que começava assim:


               A rua...
               Cumprida, cumprida, atua...
               Olê! complicada, complicada, alua
               A rua
               Nua!


               Essa idéia reflete-se nas religiões, nos livros sagrados, na arte de todos os tempos, cada vez mais
               afiada, cada vez mais sensível. Na literatura atual a rua é a inspiração  dos  grandes artistas,
               desde Victor Hugo, Balzac e Dickens, até às epopéias de Zola, desde o funambulismo de Banville
               até o humorismo de Mark Twain. Não há um escritor moderno que  não  tenha cantado a rua. Os
               sonhadores levam mesmo a exagerá-la, e hoje, devido certamente à corrente socialista, há toda
               uma literatura em que a alma das ruas soluça. Os poetas refinados levam a mórbida inspiração a
               cantar os aspectos parciais da rua. Como os românticos cantavam os pés, os olhos, a boca e
               outras partes do corpo das apaixonadas, eles cantam o semblante das casas vazias, os revérberos
               de gás como Rodenbach:


               Le dimanche, en semaine, et par tous les temps
               L’un est debout, un autre, il semble, s’agenouille.
               Et chacun se sent seul comme dans une foule.
               Les revérbéres des banlieues
               Sont des cages oú des oiseaux déplient leurs queues.


               Os pregões, as calçadas, e houve até um  – Mário Pederneiras –que nos deu a sutilíssima e
               admirável psicologia das árvores urbanas:


               Com que magoado encanto
               Com que triste saudade
               Sobre mim atua
               Esta estranha feição das árvores da rua.
               E elas são, entretanto,
               A única ilusão rural de uma cidade!

               As árvores urbanas
               São, em geral, conselheiras e frias
               Sem as grandes expansões e as grandes alegrias
               Das provincianas.

               Não têm sequer os plácidos carinhos
               Dessas largas manhãs provinciais e enxutas.
               Nem a orquestra dos ninhos
               Nem a graça vegetal das frutas.
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