Page 12 - 3M A ALMA ENCANTADORA DAS RUAS
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Há uma estética da rua, afirmou Bulls. Sim. Há. Porque as atrizes de fama, os oradores mais
populares, os hércules mais cheios de força, os produtos mais evidentes dos blocos comerciais,
vivem de procurar agradá-la. Desse orgulho transitório surgiu para a rua a glória policroma da arte.
O temor de serem esquecidos criou para cada uma a roupagem variada, encheu-as como
Melusinas de pedra, como fadas cruéis que se teme e se satisfaz, de vestidos múltiplos, de
cores variegadas, de fanfreluches de papel, da ardência fulgurante das montras de cambiantes
luzentes; deu-lhes uma perpétua apoteose de sacrifício à espera do milagre do lucro ou da
popularidade. A estética, a ornamentação das ruas, é o resultado do respeito e do medo que lhes
temos...
No espírito humano a rua chega a ser uma imagem que se liga a todos os sentimentos e serve
para todas as comparações. Basta percorrer a poesia anônima para constatar a flagrante verdade.
É quase sempre na rua que se fala mal do próximo. Folheemos uma coleção de fados. Lá está a
idéia:
Adeus, ó Rua Direita
Ó Rua da Murmuração.
Onde se faz audiência
Sem juiz nem escrivão.
Aliás muito tímida, como devendo ser cantada por quem tem culpa no cartório. Mas, se um
apaixonado quer descrever o seu peito, só encontra uma comparação perfeita.
O meu peito é uma rua
Onde o meu bem nunca passa,
É a rua da amargura
Onde passeia a desgraça.
Se sente o apetite de descrever, os espécimens são sem conta.
Na rua do meu amor
Não se pode namorar:
De dia, velhas à porta,
De noite, cães a ladrar.
E é suave lembrar aquele sonhador que, defronte da janela da amada e desejando realizar o
impossível para lhe ser agradável, só pôde sussurrar esta vontade meiga:
Se esta rua fosse minha
Eu mandava ladrilhar
De pedrinhas de brilhante
Para meu bem passar.
O povo observa também, e diz mais numa quadra do que todos nós a armar o efeito de períodos
brilhantes. Sempre recordarei um tocador de violão a cantar com lágrimas na voz como diante
do inexorável destino: