Page 8 - 3M A ALMA ENCANTADORA DAS RUAS
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positivista porque é tarde para mudar de crença. Mas respeito muito e admiro Teixeira Mendes...
Nós, os homens nervosos, temos de quando em vez alucinações parciais da pele, dores
fulgurantes, a sensação de um contacto que não existe, a certeza de que chamam por nós. As
ruas têm os rolos, as casas mal assombradas, e há até ruas possessas, com o diabo no corpo.
Em S. Luís do Maranhão há uma rua sonâmbula muito menos cacete que a ópera célebre do
mesmo nome. Essa rua é a Rua de Santa Ana, a lady Macbeth da topografia. Deu-se lá um crime
horrível. Às dez horas, a rua cai em estado sonambúlico e é só gritos, clamores: sangue! sangue!
Ruas assim ainda mostram o que pensam. Talvez as outras tenham maiores delírios, mas são
como os homens normais – guardam dentro do cérebro todos os pensamentos extravagantes.
Quem se atreveria a resumir o que num minuto pensa de mal, de inconfessável, o mais honesto
cidadão? Entre as ruas existem também as falsas, as hipócritas, com a alma de Tartufo e de Iago.
Por isso os grandes mágicos do interior da África Central, que dos sertões adustos levavam às
cidades inglesas do litoral sacos d’ouro em pó e grandes macacos tremendos, têm uma cantiga
estranha que vale por uma sentença breve de Catão:
O di ti a uê, chê
F’u, a uá ny
Odé, odá, bi ejô
Sa lo dê
Sentença que em eubá, o esperanto das hordas selvagens, quer dizer apenas isto: rua foi feita
para ajuntamentos. Rua é como cobra. Tem veneno. Foge da rua!
Mas o importante, o grave, é ser a rua a causa fundamental da diversidade dos tipos urbanos. Não
sei se lestes um curioso livro de E. Demolins, Comment la route crée le type social. É uma
revolução no ensino da Geografia. "A causa primeira e decisiva da diversidade das raças, diz
ele, é a estrada, o caminho que os homens seguirem. Foi a estrada que criou a raça e o tipo social.
Os grandes caminhos do globo foram, de qualquer forma, os alambiques poderosos que
transformaram os povos. Os caminhos das grandes estepes asiáticas, das tundras siberianas, das
savanas da América ou das florestas africanas insensivelmente e fatalmente criaram o tipo tártaro-
mongol, o lapão-esquimó, o pele-vermelha, o índio, o negro".
A rua é a civilização da estrada. Onde morre o grande caminho começa a rua, e, por isso, ela está
para a grande cidade como a estrada está para o mundo. Em embrião, é o princípio, a causa
dos pequenos agrupamentos de uma raça idêntica. Daí, em muitos sítios da terra as aldeias terem
o único nome de rua. Quando aumentam e crescem depois, ou pela devoção da maioria dos
habitantes ou por uma impressão de local, acrescentam ao substantivo rua o complemento que
das outras as deve diferençar. Em Portugal esse fato é comum. Há uma aldeia de 700 habitantes
no Minho que se chama modestamente Rua de S. Jorge, uma outra no Douro que é a Rua da
Lapela, e existem até uma Rua de Cima e uma Rua de Baixo.
Nas grandes cidades a rua passa a criar o seu tipo, a plasmar o moral dos seus habitantes, a
inocular-lhes misteriosamente gostos, costumes, hábitos, modos, opiniões políticas. Vós todos
deveis ter ouvido ou dito aquela frase:
– Como estas meninas cheiram a Cidade Nova!
Não é só a Cidade Nova, sejam louvados os deuses! Há meninas que cheiram a Botafogo, a
Haddock Lobo, a Vila Isabel, como há velhas em idênticas condições, como há homens também.
A rua fatalmente cria o seu tipo urbano como a estrada criou o tipo social. Todos nós conhecemos
o tipo do rapaz do Largo do Machado: cabelo à americana, roupas amplas à inglesa, lencinho
minúsculo no punho largo, bengala de volta, pretensões às línguas estrangeiras, calças dobradas
como Eduardo VII e toda a snobopolis do universo. Esse mesmo rapaz, dadas idênticas posições,