Page 5 - 3M A ALMA ENCANTADORA DAS RUAS
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ei-lo a concluir uma lei magnífica por ser para seu uso exclusivo, ei-lo a psicologar, ei-lo a pintar
os pensamentos, a fisionomia, a alma das ruas. E é então que haveis de pasmar da futilidade do
mundo e da inconcebível futilidade dos pedestres da poesia de observação...
Eu fui um pouco esse tipo complexo, e, talvez por isso, cada rua é para mim um ser vivo e imóvel.
Balzac dizia que as ruas de Paris nos dão impressões humanas. São assim as ruas de todas as
cidades, com vida e destinos iguais aos do homem.
Por que nascem elas? Da necessidade de alargamento das grandes colmeias sociais, de
interesses comerciais, dizem. Mas ninguém o sabe. Um belo dia, alinha-se um tarrascal, corta-
se um trecho de chácara, aterra-se lameiro, e aí está: nasceu mais uma rua. Nasceu para evoluir,
para ensaiar primeiros passos, para balbuciar, crescer, criar uma individualidade. Os homens têm
no cérebro a sensação dessa semelhança, e assim como dizem de um rapagão:
– Quem há de pensar que vi este menino a engatinhar!
Murmuram:
– Quem há de dizer que esta rua há dez anos só tinha uma casa!
Um cavalheiro notável, ao entrar comigo certa vez na Rua Senador Dantas, não se conteve:
– É impossível passar por aqui sem lembrar que a velhice começa a chegar. Quando vim da
província esta rua tinha apenas duas casas no antigo jardim do Convento, e eu tomava chopps no
Guarda Velha a três vinténs!
Eu sorria, mas o pobre sujeito importante dizia isso como se recordasse os dois primeiros
dentes de um homenzarrão, com uma dentadura capaz atualmente de morder as algibeiras de
uma sociedade inteira. Era a recordação, a saudade do passado começo. Há nada mais
enternecedor que o princípio de uma rua? É ir vê-lo nos arrabaldes. A princípio capim, um braço
a ligar duas artérias. Percorre-o sem pensar meia dúzia de criaturas. Um dia cercam à beira um
lote de terreno. Surgem em seguida os alicerces de uma casa. Depois de outra e mais outra.
Um combustor tremeluz indicando que ela já se não deita com as primeiras sombras. Três ou
quatro habitantes proclamam a sua salubridade ou o seu sossego. Os vendedores ambulantes
entram por ali como por terreno novo a conquistar. Aparece a primeira reclamação nos jornais
contra a lama ou o capim. É o batismo. As notas policiais contam que os gatunos deram num
dos seus quintais. É a estréia na celebridade, que exige o calçamento ou o prolongamento da linha
de bondes. E insensivelmente, há na memória da produção, bem nítida, bem pessoal, uma
individualidade topográfica a mais, uma individualidade que tem fisionomia e alma.
Algumas dão para malandras, outras para austeras; umas são pretensiosas, outras riem aos
transeuntes e o destino as conduz como conduz o homem, misteriosamente, fazendo-as nascer
sob uma boa estrela ou sob um signo mau, dando-lhes glórias e sofrimentos, matando-as ao cabo
de um certo tempo.
Oh! sim, as ruas têm alma! Há ruas honestas, ruas ambíguas, ruas sinistras, ruas nobres,
delicadas, trágicas, depravadas, puras, infames, ruas sem história, ruas tão velhas que bastam
para contar a evolução de uma cidade inteira, ruas guerreiras, revoltosas, medrosas, spleenéticas,
snobs, ruas aristocráticas, ruas amorosas, ruas covardes, que ficam sem pinga de sangue...