Page 84 - 3M A ALMA ENCANTADORA DAS RUAS
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Eu resolvera passar o dia com os trabalhadores da estiva e, naquela confusão, via-os vir chegando
a balançar o corpo, com a comida debaixo do braço, muito modestos. Em pouco, a beira do cais
ficou coalhada. Durante a última gréve, um delegado de polícia dissera-me:
– São criaturas ferozes! Nem a tiro.
Eu via, porém, essas fisionomias resignadas à luz do sol e elas me impressionavam de maneira
bem diversa. Homens de excessivo desenvolvimento muscular, eram todos pálidos – de um pálido
embaciado como se lhes tivessem pregado à epiderme um papel amarelo, e assim, encolhidos,
com as mãos nos bolsos, pareciam um baixo-relevo de desilusão, uma frisa de angústia.
Acerquei-me do primeiro, estendi-lhe a mão:
– Posso ir com vocês, para ver?
Ele estendeu também a mão, mão degenerada pelo trabalho, com as falanges recurvas e a palma
calosa e partida.
– Por que não? Vai ver apenas o trabalho, fez com amarga voz.
E quedou-se, outra vez, fumando.
– É agora a partida?
– É.
Entre os botes, dois saveiros enormes, rebocados por uma lancha, esperavam. Metade dos
trabalhadores, aos pulos, bruscamente, saltou para os fardos. Saltei também. Acostumados,
indiferentes à travessia, eles sentaram-se calados, a fumar. Um vento frio cortava a baía. Todo
um mundo de embarcações movia-se, coalhava o mar, riscava a superfície das ondas; lanchas
oficiais em disparada, com a bandeira ao vento; botes, chatas, saveiros, rebocadores. Passamos
perto de uma chata parada e inteiramente coberta de oleados. Um homem, no alto, estirou o braço,
saudando.
– Quem é aquele?
– É o José. É chateiro-vigia. Passou todo o dia ali para guardar a mercadoria dos patrões. Os
ladrões são muitos. Então, fica um responsável por tudo, toda a noite, sem dormir, e ganha seis
mil réis. As vezes, os ladrões atacam os vigias acordados e o homem, só, tem que se defender
a revólver.
Civilizado, tive este comentário frio: