Page 85 - 3M A ALMA ENCANTADORA DAS RUAS
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– Deve estar com sono, o José.


               – Qual! Esse é dos que dobra dias e dias. Com mulher e oito filhos precisa trabalhar. Ah! meu
               senhor, há homens, por este mar afora cujos filhos de seis meses  ainda os não conhecem. Saem
               de madrugada de casa. O José está à espera que a alfândega tire o termo da carga, que não é
               estrangeira.


               Outras chatas perdiam-se paradas na claridade do sol. Nós passávamos entre as lanchas. Ao
               longe, bandos de gaivotas riscavam o azul do céu e o Cais dos Mineiros já se perdia distante da
               névoa  vaga.  Mas  nós  avistávamos  um  outro  cais  com  um  armazém  ao  fundo.  À  beira desse
               cais, saveiros enormes esperavam mercadorias; e, em cima, formando um círculo ininterrupto,
               homens de braços nus saíam a correr de dentro da casa, atiravam o saco no saveiro, davam a
               volta à disparada, tornavam a sair a galope com outro saco, sem cessar, contínuos como a correia
               de uma grande máquina. Eram sessenta, oitenta, cem, talvez duzentos. Não os podia contar. A
               cara escorrendo suor. Os pobres surgiam do armazém como flechas, como flechas voltavam. Um
               clamor subia aos céus apregoando o serviço:


               – Um, dois, três, vinte e sete; cinco, vinte, dez, trinta!


               E a ronda continuava diabólica.


               – Aquela gente não cansa?


               – Qual! trabalham assim horas a fio. Cada saco daqueles tem sessenta quilos e para transportá-
               lo ao saveiro pagam 60 réis. Alguns pagam menos – dão só 30 réis, mas, assim mesmo, há quem
               tire dezesseis mil réis por dia.


               O trabalho da estiva é complexo, variado; há a estiva da aguardente, do bacalhau, dos cereais, do
               algodão; cada uma tem os seus servidores, e homens há que só servem a certas e determinadas
               estivas, sendo por isso apontados.


               – É muito, fiz.


               –  Passam  dias,  porém,  sem  ter  trabalho  e  imagine  quantas  corridas  são  necessárias  para
               ganhar a quantia fabulosa.


               A lancha fizera-se ao largo. Caminhávamos para o poço onde o navio que devia sair naquela noite
               fundeava, todo de branco. Era o começo do dia. A bordo ficou um terno de homens, e eu com
               eles. O terno divide-se assim: um no guincho, quatro na embarcação,  oito no porão  e quatro no
               convés. Isso quando a carga é seca. Carregava café o vapor.


               Logo que o saveiro atracou, eles treparam pelas escadas, rápidos; oito homens desapareceram
               na face aberta do porão, despiram-se, enquanto os outros rodeavam o guincho e as correntes
               de ferro começavam a ir e vir do porão para o saveiro, do saveiro para o porão, carregadas de
               sacas de café. Era regular, matemático, a oscilação de um lento e formidável relógio.
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