Page 83 - 3M A ALMA ENCANTADORA DAS RUAS
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esmaltes, o azul das turquesas. Toda a montra é um tesouro no brilho cegador e alucinante das
               pedrarias.


               Elas olham sérias, o peito a arfar. Olham muito tempo e, ali, naquele trecho de rua civilizada, as
               pedras preciosas operam, nas sedas dos escrínios, os sortilégios cruéis dos antigos ocultistas. As
               mãozinhas bonitas apertam o cabo da sombrinha como querendo guardar um pouco de tanto
               fulgor; os lábios pendem no esforço da atenção; um vinco ávido acentua os semblantes. Onde
               estará o príncipe encantador? Onde estará o velho d. João?


               Um suspiro mais forte – a coragem da que se libertou da hipnose – fá-las despegar-se do lugar.
               É  noite.  A  rua  delira  de  novo.  À  porta  dos  cafés  e  das  confeitarias,  homens,  homens,  um
               estridor, uma vozeria. Já se divisam perfeitamente as pessoas no Largo de S. Francisco – onde
               estão os bondes para a Cidade Nova, para a Rua da América, para o Saco. Elas tomam um ar
               honesto. Os tacões das botinas batem no asfalto. Vão como quem tem pressa, como quem perdeu
               muito tempo.


               Da Avenida Uruguaiana para diante não olham mais nada, caladas, sem comentários.


               Afinal chegam ao Largo. Um adeus, dois beijos, "até amanhã!"


               Até  amanhã!  Sim,  elas  voltarão  amanhã,  elas  voltam  todo  dia,  elas  conhecem  nas  suas
               particularidades todas as montras da feira das tentações; elas continuarão a passar, à hora do
               desfalecimento da artéria, mendigas do luxo, eternas fulanitas da vaidade, sempre com a ambição
               enganadora de poder gozar as jóias, as plumas, as rendas, as flores.


               Elas hão de voltar, pobrezinhas – porque a esta hora, no canto do bonde, tendo talvez ao lado o
               conquistador de sempre, arfa-lhes o peito e têm as mãos frias com a idéia desse luxo corrosivo.
               Hão  de  voltar,  caminho  da  casa,  parando  aqui,  parando  acolá,  na  embriaguez  da  tentação –
               porque a sorte as fez mulheres e as fez pobres, porque a sorte não lhes dá, nesta vida de engano,
               senão a miragem do esplendor para perdê-las mais depressa.


               E haveis então de vê-las passar, as mariposas do luxo, no seu passinho modesto, duas a duas,
               em pequenos grupos, algumas loiras, outras morenas...


               Os Trabalhadores de Estiva


               Às 5 da manhã ouvia-se um grito de máquina rasgando o ar. Já o cais, na claridade pálida da
               madrugada,  regurgitava  num  vai-e-vem  de  carregadores,  catraieiros,  homens  de  bote  e
               vagabundos maldormidos à beira dos quiosques. Abriam-se devagar os botequins ainda com os
               bicos de gás acesos; no interior os caixeiros, preguiçosos, erguiam os braços com bocejos largos.
               Das ruas que vazavam na calçada rebentada do cais, afluía gente, sem  cessar, gente que surgia
               do nevoeiro, com as mãos nos bolsos, tremendo, gente que se metia pelas bodegas e parava à
               beira do quiosque numa grande azáfama. Para o cais da alfândega, ao lado, um grupo de ociosos
               olhava através das frinchas de um tapume, rindo a perder; um carregador, encostado aos umbrais
               de uma porta, lia, de óculos, o jornal, e todos gritavam, falavam, riam, agitavam-se na frialdade
               daquele acordar, enquanto dos botes policrômicos homens de camisa de meia ofereciam, aos
               berros,  um  passeiozinho  pela  baía.  Na  curva  do  horizonte  o  sol  de  maio  punha  manchas
               sangrentas e a luz da manhã abria, como desabrocha um lírio, no céu pálido.
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