Page 80 - 3M A ALMA ENCANTADORA DAS RUAS
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São mulheres. Apanham as migalhas da feira. São as anônimas, as fulanitas do gozo, que não
               gozam nunca. E então, todo dia, quando céu se rocalha de ouro e já andam os relógios pelas seis
               horas, haveis vê-las passar, algumas loiras, outras morenas, quase todas mestiças. A idade dá-
               lhes a elasticidade dos gestos, o jeito bonito do andar e essa beleza passageira que chamam
               – do diabo. Os vestidos são pobres: saias  escura sempre as mesmas; blusa de chitinha rala. Nos
               dias  de  chuva  um  parágua  e  a  indefectível  pelerine.  Mas  essa  miséria  é  limpa,  escovada. As
               botas brilham, a saia não tem uma poeira, as mãos foram cuidadas. Há nos lóbulos de algumas
               orelhas brincos simples, fechando as blusas lavadinhas, broches "montana", donde escorre o fio
               de uma chatelaine.


               Há  mesmo  anéis  –  correntinhas  de  ouro,  pedras  que  custam  barato;  coralinas,  lápis-lazúli,
               turquesas  falsas.  Quantos  sacrifícios  essa  limpeza  não  representa?  Quantas  concessões  não
               atestam, talvez, os modestos pechisbeques!


               Elas acordaram cedo, foram trabalhar. Voltam para o lar semconforto, com todas as ardências e
               os desejos indomáveis dos vinte anos.


               A rua não lhes apresenta só o amor, o namoro, o desvio...Apresenta-lhes o luxo. E cada montra
               é a hipnose e cada rayon de modas é o foco em torno do qual reviravolteiram e anseiam as pobres
               mariposas.


               – Ali no fundo, aquele chapéu...


               – O que tem uma pluma?


               – Sim, uma pluma verde... Deve ser caro, não achas?


               São duas raparigas, ambas morenas. A mais alta alisa instintivamente os bandós, sem chapéu,
               apenas com pentes de ouro falso. A montra reflete-lhe o perfil entre as plumas, as rendas de
               dentro; e enquanto a outra afunda o olhar nos veludos que realçam toda a espetaculização do
               luxo, enquanto a outra sofre aquela tortura de Tântalo, ela mira-se, afina com as duas mãos a
               cintura, parece pensar coisas graves. Chegam, porém, mais duas. A  pobreza feminina  não gosta
               dos flagrantes de curiosidade invejosa. O par que chega, por último, pára hesitante. A rapariga
               alta agarra o braço da outra:


               – Anda daí! Pareces criança.


               – Que véus, menina! que véus!...


               – Vamos. Já escurece.


               Param, passos adiante, em frente às enormes vitrinas de uma grande casa de modas. As montras
               estão todas de branco, de rosa, de azul; desdobram-se em sinfonias de cores suaves e claras,
               dessas cores que alegram a alma. E os tecidos são todos leves – irlandas, guipures, pongées,
               rendas. Duas bonecas de tamanho natural – as deusas do "Chiffon" nos altares da
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