Page 79 - 3M A ALMA ENCANTADORA DAS RUAS
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– É verdade! Que bonito!
As duas raparigas curvam-se para a montra, com os olhos ávidos, um vinco estranho nos lábios.
Por trás do vidro polido, arrumados com arte, entre estatuetas que apresentam pratos com
bugingangas de fantasia e a fantasia policroma de coleções de leques, os desdobramentos das
sedas, das plumas, das guipures, das rendas.
É a hora indecisa em que o dia parece acabar e o movimento febril da Rua do Ouvidor relaxa-
se, de súbito, como um delirante a gozar os minutos de uma breve acalmia. Ainda não acenderam
os combustores, ainda não ardem a sua luz galvânica os focos elétricos. Os relógios acabaram de
bater, apressadamente, seis horas. Na artéria estreita cai a luz acinzentada das primeiras sombras
– uma luz muito triste, de saudade e de mágoa. Em algumas casas correm com fragor as cortinas
de ferro. No alto, como o teto custoso do beco interminável, o céu, de uma pureza admirável,
parecendo feito de esmaltes translúcidos superpostos, rebrilha, como uma jóia em que se
tivessem fundido o azul de Nápoles, o verde perverso de Veneza, os ouros e as pérolas do
Oriente.
Já passaram as professional beauties, cujos nomes os jornais citam; já voltaram da sua hora de
costureiro ou de joalheiro as damas do alto tom; e os nomes condecorados da finança e os condes
do Vaticano e os rapazes elegantes e os deliciosos vestidos claros airosamente ondulantes já se
sumiram, levados pelos "autos", pelas parelhas fidalgas, pelos bondes burgueses. A rua tem de
tudo isso uma vaga impressão, como se estivesse sob o domínio da alucinação, vendo passar um
préstito que já passou. Há um hiato na feira das vaidades: sem literatos, sem poses, sem flirts.
Passam apenas trabalhadores de volta da faina e operárias que mourejaram todo o dia.
Os operários vêm talvez mal-arranjados, com a lata do almoço presa ao dedo mínimo. Alguns vêm
de tamancos. Como são feios os operários ao lado dos mocinhos bonitos de ainda há pouco!
Vão conversando uns com os outros, ou calados, metidos com o próprio eu. As raparigas ao
contrário: vêm devagar, muito devagar, quase sempre duas a duas, parando de montra em montra,
olhando, discutindo, vendo.
– Repara só, Jesuína.
– Ah! minha filha. Que lindo!...
Ninguém as conhece e ninguém nelas repara, a não ser um ou outro caixeiro em mal de amor ou
algum pícaro sacerdote de conquistas.
Elas, coitaditas! passam todos os dias a essa hora indecisa, parecem sempre pássaros
assustados, tontos de luxo, inebriados de olhar. Que lhes destina no seu mistério a vida cruel?
Trabalho, trabalho; a perdição, que é a mais fácil das hipóteses; a tuberculose ou o alquebramento
numa ninhada de filhos. Aquela rua não as conhecerá jamais. Aquele luxo será sempre a sua
quimera.