Page 3 - 3M A ALMA ENCANTADORA DAS RUAS
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A RUA


               Eu amo a rua. Esse sentimento de natureza toda íntima não vos seria revelado por mim se não
               julgasse, e razões não tivesse para julgar, que este amor assim absoluto e assim exagerado é
               partilhado por todos vós. Nós somos irmãos, nós nos sentimos parecidos e iguais; nas cidades,
               nas aldeias, nos povoados, não porque soframos, com a dor e os desprazeres, a lei e a polícia,
               mas porque nos une, nivela e agremia o amor da rua. É este mesmo o sentimento imperturbável
               e indissolúvel, o único que, como a própria vida, resiste às idades e às épocas. Tudo se transforma,
               tudo varia – o amor, o ódio, o egoísmo. Hoje é mais amargo o riso, mais dolorosa a ironia, Os
               séculos passam, deslizam, levando as coisas fúteis e os acontecimentos notáveis. Só persiste e
               fica, legado das gerações cada vez maior, o amor da rua.


               A rua! Que é a rua? Um cançonetista de Montmartre fá-la dizer:


               Je suís la rue, femme êternellement verte,
               Je n’ai jamais trouvé d’autre carrière ouverte
               Sinon d’être la rue, et, de tout temps, depuis
               Que ce pénible monde est monde, je la suis...


               A verdade e o trocadilho!  Os dicionários dizem: "Rua, do latim ruga, sulco. Espaço entre as casas
               e  as  povoações  por  onde  se  anda  e  passeia".  E  Domingos  Vieira,  citando  as  Ordenações:
               "Estradas e rua pruvicas antiguamente usadas e os rios navegantes se som cabedaes que correm
               continuamente  e  de  todo  o  tempo  pero  que  o  uso  assy  das  estradas  e  ruas  pruvicas".  A
               obscuridade da gramática e da lei! Os dicionários só são considerados fontes  fáceis  de completo
               saber pelos que nunca os folhearam. Abri o primeiro, abri o segundo, abri dez, vinte enciclopédias,
               manuseei infolios especiais de curiosidade. A rua era para eles apenas um alinhado de fachadas
               por onde se anda nas povoações.

               Ora, a rua é mais do que isso, a rua é um fator da vida das cidades, a rua tem  alma!  Em Benares
               ou em Amsterdão, em Londres ou Buenos Aires, sob os céus mais diversos, nos mais variados
               climas, a rua é a agasalhadora da miséria. Os desgraçados não  se sentem  de todo sem o auxílio
               dos deuses enquanto diante dos seus olhos uma rua abre para outra rua. A rua é o aplauso dos
               medíocres,  dos  infelizes,  dos  miseráveis  da  arte.  Não  paga  ao  Tamagno  para ouvir berros
               atenorados de leão avaro, nem à velha Patti para admitir um fio de voz velho, fraco e legendário.
               Bate,  em  compensação,  palmas  aos  saltimbancos  que,  sem  voz,  rouquejam  com  fome  para
               alegrá-la e para comer. A rua é generosa.  O crime, o delírio, a miséria não os denuncia ela. A rua
               é  a  transformadora  das  línguas.  Os Cândido  de Figueiredo  do  universo  estafam-se  em  juntar
               regrinhas para enclausurar expressões; os prosadores bradam contra os Cândido. A rua continua,
               matando  substantivos,  transformando  a  significação  dos  termos,  impondo  aos  dicionários  as
               palavras  que  inventa,  criando  o  calão  que  é  o  patrimônio  clássico dos léxicons futuros. A rua
               resume para o animal civilizado todo o conforto humano. Dá-lhe luz, luxo, bem-estar, comodidade
               e até impressões selvagens no adejar das árvores e no trinar dos pássaros.


               A rua nasce, como o homem, do soluço, do espasmo. Há suor humano na argamassa do seu
               calçamento. Cada casa que se ergue é feita do esforço exaustivo de muitos seres, e haveis de
               ter visto pedreiros e canteiros, ao erguer as pedras para as frontarias, cantarem, cobertos de suor,
               uma melopéia tão triste que pelo ar parece um arquejante soluço. A rua sente nos nervos essa
               miséria da criação, e por isso é a mais igualitária, a mais socialista, a mais niveladora das obras
               humanas. A rua criou todas as blagues todos os lugares-comuns. Foi ela que fez a majestade dos
               rifões,  dos  brocardos,  dos  anexins,  e  foi  também  ela  que  batizou  o  imortal  Calino.  Sem  o
               consentimento da rua não passam os sábios, e os charlatães, que a lisonjeiam lhe resumem a
               banalidade, são da primeira ocasião desfeitos e soprados como bolas de sabão. A rua é a eterna
               imagem da ingenuidade. Comete crimes, desvaria à noite, treme com a febre dos delírios, para
               ela como para as crianças a aurora é sempre formosa, para ela não há o despertar triste, quando
               o  sol  desponta  e  ela  abre  os  olhos  esquecida  das  próprias  ações,  é,  no  encanto  da  vida
               renovada, no chilrear do passaredo, no embalo nostálgico dos pregões – tão modesta, tão lavada,
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