Page 70 - 3M A ALMA ENCANTADORA DAS RUAS
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Atirei-me dentro do automóvel, exausto. A máquina disparou outra vez, lutando agora contra a
massa dos carros, dos automóveis, dos tramways que chegavam.
– Onde é a Lapa do Desterro?
– Quer ir lá? É uma igreja de gente pobre. E na Lapa.
– Pois vamos lá.
O automóvel quebrou pela Rua da Lapa, parou defronte da velha igreja. Eram duas horas da
manhã. Havia à porta a mesma matula de homens endomingados à espera da conquista, a mesma
sarabanda de sirigaitas. Entrei. O tapete do templo, velho, esfarripado, tinha por cima, em alguns
trechos, folhas de mangueira. No altar-mor, dos lados, entre panos azuis, ardiam dois bicos auer,
e aquela luz azul como transfigurava o rebátulo, os acessórios, os ouros despolidos. A
concorrência era menor, na nave, mulheres de xale formavam roda conversando. Andei por ali
tristemente. Ao sair, porém, vi de joelhos um homem.
De joelhos? Na missa do galo? Deus! Quem seria aquele pobre coitado? Aproximei-me. Era um
rapaz – teria no máximo vinte anos. Ao lado o seu chapelão de coco repousava junto à grossa
bengala. No seu corpo ajustava-se demais um grosso fato de inverno aldeão. De mãos postas, a
face ingênua voltada para o altar, esse ser, numa noite báquica, era tão anormal, tão
extraordinário, que eu cheguei bem perto, olhei bem, fui ao ponto de curvar-me para lhe espiar
os olhos. O pobre sobressaltou-se.
– Meu senhor!
– Que está você a fazer aí?
– Que estava? Ah? perdão...Estava a rezar, estava a pedir ao Menino Deus que dê saúdinha aos
pais lá na terra e que me proteja.
– Donde é você?
a
– Saberá V. S que do Douro, sim senhor.
Falava de joelhos, a sorrir para mim; pobre alma ingênua e pura de aldeia, pobre alma que se ia
putrefazer na grande cidade, único coração que adorara Deus entre as dez mil pessoas vistas por
mim!
Oh! Tive um ímpeto, o desejo de abraçá-lo, a sensação de quem, após uma longa desilusão, sente
viva no abismo fundo a flor maravilhosa. Mas já em torno se fazia roda de ociosos, já um sujeito
surgira com um riso de troça.