Page 65 - 3M A ALMA ENCANTADORA DAS RUAS
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– Vai até o auô, salto mortal, que se inventou na Bahia.
Para aquela lição tão intempestiva, já se havia formado um grupo de temperamentos bélicos.
Um rapazola falou.
– E a encruzilhada?
– É verdade, não disseste nada de encruzilhada?
E a discussão cresceu. Parecia que iam brigar.
Fora, a chuva jorrava torrencial. Um relógio pôs-se a bater preguiçosamente meia-noite. As
mulatinhas cantavam tristes:
Meu rei de Ouros quem te matou?
Foi um pobre caçadô.
Mas Dudu saltou para o meio da sala. Houve um choque de palmas. E diante do quarto, onde se
confundia o mundo em adoração a Deus, o negro cantou, acompanhado pelo coro:
Já deu meia-noite
O sol está pendente
Um quilo de carne
Para tanta gente!
Oh! suave ironia dos malandros! Na baiúca havia alegria, parati, álcool, fantasia, talvez o amor
nascido de todas aquelas danças e do insuportável cheiro do éter floral.
Não havia, porém, com que comer. Diante de Jesus, que só lhes dera o dia de amanhã, a
queixa se desfazia num quase riso. Um quilo de carne para tanta gente!
Talvez nem isso! Saí, deixei o último presepe.
De longe, a casinhola com as suas iluminações tinha um ar de sonho sob a chuva, um ar de
milagre, o milagre da crença, sempre eterna e vivaz, saudando o natal de Deus através da
ingenuidade dos pobres. Como seria bom dar-lhes de comer, ó Deus poderoso!
Como lhes daria eu um farto jantar se, como eles, não tivesse apenas a esperança de amanhã
obter um quilo de carne só para mim!
Como se Ouve a Missa do "Galo"