Page 73 - 3M A ALMA ENCANTADORA DAS RUAS
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Parei a uma porta, estendo as mãos.
– É a loucura, não tem dúvida, é a loucura. Pois é possível louvar o agente embrutecedor das
cefalgias e do horror?
– Eu adoro o horror. É a única feição verdadeira da humanidade. E por isso adoro os cordões, a
vida paroxismada, todos os sentimentos tendidos, todas as cóleras a rebentar, todas as ternuras
ávidas de torturas.
Achas tu que haveria carnaval se não houvesse os cordões? Achas tu que bastariam os préstitos
idiotas de meia dúzia de senhores que se julgam engraçadíssimos ou esse pesadelo dos três dias
gordos intitulado – máscaras de espírito? Mas o Carnaval teria desaparecido, seria hoje menos
que a festa da Glória ou o "bumba-meu-boi" se não fosse o entusiasmo dos grupos da Gamboa,
do Saco, da Saúde, de S. Diogo, da Cidade Nova, esse entusiasmo ardente, que meses antes dos
três dias vem queimando como pequenas fogueiras crepitantes para acabar no formidável e total
incêndio que envolve e estorce a cidade inteira. Há em todas as sociedades, em todos os meios,
em todos os prazeres, um núcleo dos mais persistentes, que através do tempo guarda a chama
pura do entusiasmo. Os outros são mariposas, aumentam as sombras, fazem os efeitos.
Os cordões são os núcleos irredutíveis da folia carioca, brotam como um fulgor mais vivo e são
antes de tudo bem do povo, bem da terra, bem da alma encantadora e bárbara do Rio.
Quantos cordões julgas que há da Urca ao Caju? Mais de duzentos! E todos, mais de duas
centenas de grupos, são inconscientemente os sacrários da tradição religiosa da dança, de um
costume histórico e de um hábito infiltrado em todo o Brasil.
– Explica-te! bradei eu, fugindo para outra porta, sob uma avalanche de confetti e velhas
serpentinas varridas de uma sacada.
Atrás de mim, todo sujo, com fitas de papel velho pelos ombros, o meu companheiro continuou:
– Eu explico. A dança foi sempre uma manifestação cultual. Não há danças novas; há lentas
transformações de antigas atitudes de culto religioso. O bailado clássico das bailarinas do Scala e
da Ópera tem uma série de passos do culto bramânico, o minueto é uma degenerescência da
reverência sacerdotal, e o cakewalk e o maxixe, danças delirantes, têm o seu nascedouro nas
correrias de Dionísios e no pavor dos orixalás da África. A dança saiu dos templos; em todos os
templos se dançou, mesmo nos católicos.
O meu amigo falava intercortado, gesticulando. Começava desconfiar da sua razão. Ele,
entretanto, esticando o dedo, bradava no torvelinho da rua:
– O Carnaval é uma festa religiosa, é o misto dos dias sagrados de Afrodita e Dionísios, vem
coroado de pâmpanos e cheirando a luxúria. As mulheres entregam-se; os homens abrem-se; os
instrumentos rugem; estes três dias ardentes, coruscantes são como uma enorme sangria na
congestão dos maus instintos. Os cordões saíram dos templos! Ignoras a origem dos cordões?
Pois eles vêm da festa de N. Sª do Rosário, ainda nos tempos coloniais. Não sei por que os