Page 75 - 3M A ALMA ENCANTADORA DAS RUAS
P. 75
Os do Relâmpago, chocalhando chocalhos, riscando xequedês, berravam mais apressados:
No triná das ave
Vem rompendo a aurora
Ela de saudades
Suspirando chora.
Sou o Ferramenta
Vim de Portugá
O meu balão
Chama Nacioná.
Senhor Deus! Era a loucura, o pandemônio do barulho e da sandice. O fragor porém aumentava,
como se concentrando naquele ponto, e, esticando os pés, eu vi por trás da "Rainha do Mar" uma
serenata, uma autêntica serenata com cavaquinhos, violões, vozes em ritornelo sustentando
fermatas langorosas. Era a "Papoula do Japão":
Toda a gente pressurosa
Procura flor em botão
É uma flor recém-nascida
A papoula do Japão
Docemente se beijava
Uma... rola
Atraída pelo aroma
Da... papoula...
– Vamos embora. Acabo tendo uma vertigem.
– Admira a confusão, o caos ululante. Todos os sentimentos todos os fatos do ano reviravolteiam,
esperneiam, enlanguescem, revivem nessas quadras feitas apenas para acertar com a toada da
cantiga. Entretanto, homem frio, é o povo que fala. Vê o que é para ele a maior parte dos
acontecimentos.
– Quantos cordões haverá nesta rua?
– Sei lá – quarenta, oitenta, cem, dançando em frente à redação dos jornais. Mas, caramba!
olha o brilho dos grupos, louva-lhes a prosperidade. O cordão da Senhora do Rosário passou ao
cordão de Velhos. Depois dos Velhos os Cucumbis. Depois dos Cucumbis os Vassourinhas.
Hoje são duzentos.
– É verdade, com a feição feroz da ironia que esfaqueia os deuses e os céus – fiz eu recordando
a frase apologista.
– Sim, porque a origem dos cordões é o Afoxé africano, em que se debocha a religião.
– O Afoxé? insisti, pasmado.