Page 66 - 3M A ALMA ENCANTADORA DAS RUAS
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A missa do "galo" não começa precisamente à meia-noite e não tem a obrigação  de acabar antes
               de uma da manhã. A missa só, sem galo, o divino sacrifício de que  os  casuístas espanhóis do
               século  XIII  faziam  a  anatomia  –  talvez  tivesse  em  tempos  remotos  uma  hora  precisa,  exata,
               confirmada pelo dogma. O galo, porém, varia e canta, ou adiantado ou com atraso. Ora, o chamar
               a missa do Natal de Cristo missa do galo é ainda um costume latino. Os romanos  contavam as
               horas com uma certa poesia. Logo depois da media nocte, chamavam eles ao tempo gallicinium,
               hora em que o galo começa a cantar. A missa realizada, assim, após a media nocte, ficou sendo
               a missa do galo, e é ainda o velho e desusado gallicínium que se recorda quando os sacerdotes
               levantam a hóstia nos altares, e de capoeira em capoeira, sonoro e glorioso, se propaga o diálogo
               dos galos: Cristo nasceu! Onde? Em Belém...


               Eu estava exatamente defronte da igreja de Santana, dispondo de um automóvel possante. Era
               a mais que alegre hora da meia-noite que alguns temperamentos românticos ainda julgam sinistra.
               Aquele trecho da cidade tinha um aspecto festivo, um estranho aspecto  de anormalidade. Das
               ruas laterais vindo em fila famílias da Cidade Nova, primeiro as crianças, depois as mocinhas, às
               vezes ladeadas de mancebos amáveis, depois  as  matronas agasalhadas  em  fichus;  vinham
               marchando  como  quem  vai  para  a  ceifa,  grossos  machacares, de chapelão e casaco grosso;
               vinham  gingando  negrinhas  de  vestido  gomado;  "cabras"  de  calça  bombacha,  velhas  pretas
               embrulhadas em xales. Era como uma série de procissões em que as irmandades se separavam
               segundo as classes. No adro, repleto, havia uma  mistura  de populaça em festa. Grupos de
               rapazes  berravam  graças,  bondes  paravam  despejando  gente,  vendedores  ambulantes
               apregoavam  doces  e  comestíveis;  todos  os  rostos  abriam-se  em  fraterna  alegria,  e  naquela
               sarabanda  humana,  naquele  vozear  estonteante,  uma  nota  predominava –  a  do namoro.  Os
               rapazes  estavam  ali  para  namorar,  para  aproveitar  a  ocasião.  Os  encontros  tinham  sido  de
               antemão  combinados.  Quando  um  grupo  familiar  encontrava  um  rapaz  o  –  oh!  seu  Antenor!
               Também por aqui! a resposta: oh! d. Belinha, então também veio! – soavam como quem diz: oh!
               não faltaste... Havia de resto pares de braço dado, meninas que murmuravam frases ao lado dos
               mocetões, sob o olhar protetor das mamães...A missa era um alegre pretexto e, se na classe
               burguesa o namoro tinha uma cor tão suave, nas outras irmandades o entusiasmo era maior.
               Entrei no templo atrás de um grupo de mocinhos entusiasmados, um dos quais teimava que havia
               de apertar, enquanto outro, com uma carta de alfinetes, asseverava estar disposto a pregar alguns
               pares. O grupo ria, a igreja estava repleta, quente, ardendo na nave de humanidade pouco crente,
               ardendo de doçura superior nas velas dos altares. Mocinhas irrequietas, rindo, abriam passagem;
               rapazes lamentavelmente espirituosos estabeleciam o arrocho, empurrando o corpo como quem
               vai dançar o cakewalk e pretalhões de pastinhas, erguendo alto os chapéus de palha, violentavam
               a massa com os cotovelos para chegar ao altar-mor. No ar parado um sino bateu. Houve uma
               interjeição prolongada da multidão, ia começar a missa. Era a missa do galo nos bairros...


               Saí suando, tomei o automóvel, nervoso. Ao lado da máquina, na aglomeração, uma voz de mulher
               fez de repente:


               – Ai!


               – Que é? que foi? bradou um vozeirão formidável.


               – Cocoricó! cantou um gaiato.


               E entre as gargalhadas de mofa escandalosa, o automóvel rodou.


               Parei na catedral. A enchente era tão colossal que havia gente até na rua.
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