Page 74 - 3M A ALMA ENCANTADORA DAS RUAS
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pretos gostam da N. S do Rosário... Já naquele tempo gostavam e saíam pelas ruas vestidos
de reis, de bichos, pajens, de guardas, tocando instrumentos africanos, e paravam em frente à
casa do vice-rei a dançar e cantar. De uma feita, pediram ao vice-rei um dos escravos para fazer
de rei. O homem recusou a lisonja que dignificava o servo, mas permitiu os folguedos. E estes
folguedos ainda subsistem com simulacros de batalha, e quase transformados, nas cidades do
interior. Havia uma certa conexão nas frases do cavalheiro que me acompanhava; mas, cada
vez mais receoso da apologia, eu andava agora quase a correr. Tive, porém, de parar. Era o
"Grêmio Carnavalesco Destemidos do lnferno", arrastando seis estandartes cobertos de coroas
de louro. Os homens e as mulheres, vestidos de preto, amarelo e encarnado, pingando suor, zé-
pereiravam:
Os roxinóis estão a cantar
Por cima do carramanchão
Os Destemidos do Inferno
Tenho por eles paixão.
E logo vinha a chula:
Como és tão linda!
Como és formosa!
Olha os destemidos
No galho da rosa.
– Como é idiota!
– É admirável. Os poetas simbolistas são ainda mais obscuros. Ora escuta este, aqui ao lado.
Vinte e sete bombos e tambores rufavam em torno de nós com a fúria macabra de nos
desparafusar os tímpanos. Voltei-me para onde me guiava o dedo conhecedor do Píndaro daquele
desespero e vi que cerca de quarenta seres humanos cantavam com o lábio grosso, úmido de
cuspo, estes versos:
Três vezes nove
Vinte e sete
Bela morena
Me empresta seu leque
Eu quero conhecer
Quem é o treme terra?
No campo de batalha
Repentinos dá sinal da guerra.
Entretanto, os Destemidos tinham parado também. Vinham em sentido contrário, fazendo letras
complicadas pela rua forrada de papel policromo, sob a ardência das lâmpadas e dos arcos, o
grupo da "Rainha do Mar" e o grupo dos "Filhos do Relâmpago do Mundo Novo". Os da Rainha
cantavam em bamboleios de onda:
Moreninha bela
Hei de te amar
Sonhando contigo
Nas ondas do mar.