Page 67 - 3M A ALMA ENCANTADORA DAS RUAS
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O templo ardia em luzes. De fora viam-se os sacerdotes de sobrepeliz dourada, a candelária
               luminosa, os santos, e toda a igreja vibrava das graves harmonias do órgão, realçadas por um
               coro abaritonado. A turba tinha outro aspecto. Senhoras de chapéu, cavalheiros sempre com esse
               amável ar conquistador que o homem se arroga nas festas públicas, de mistura com fuzileiros
               navais, marinheiros alcoolizados, caixeirinhos do comércio de roupa nova e com os olhos cheios
               de sono.


               Toda essa gente conseguia entrar e sair, fazer como um torvelinho à porta, onde duas senhoras
               vestidas  de  negro,  esticando  uma  sacola,  diziam maquinalmente:  –  para  a  cera! para  a  cera!
               Ninguém dava, ninguém se ralava. O sopro de excitação dos sentidos parecia recrudescido pelo
               sopro musical do orgão. Figuras que saíam da igreja vinham algumas congestas; as que entravam
               tinham uma violência aguçada no olhar. Na rua, como que farejando, sujeitos iam e vinham entre
               os grupos de malandros ébrios, de negros de capa no braço com  um ar de copeiros de casa rica,
               de mulheres conversadeiras. Encontro um repórter de jornal.


               – Oh! tu também! que pândega, filho! Mas espera...


               Indagou com o olhar a rua, sorriu, apertou-me o braço, apressado:


               – Até logo.


               Dou de frente com um bando de gente de teatro. Uma das atrizes assegura:


               – Estou com os braços doendo...


               E logo depois, deixando a atriz, encontro o protetor.


               – Viste-a por aí? Olha só aquela família com crianças. Só nesta terra! Eu não! Ceei com meus
               filhos: às dez horas tudo na cama, e às onze deixei de ser pai-de-família.


               – Muito bem.


               Era  a  missa  do  galo  na  cidade...Que  tinha  eu?  Desgosto?  Tristeza?  Dor  de  cabeça?  Sei  lá!
               Despedi-me  do  ex-pai-de-família,  tomei  de  novo  o  automóvel  que  logo  deslizou  pela  Rua  da
               Assembléia para cair numa vertiginosa carreira pela Avenida Central.


               – Que é aquilo?


               – É a missa do convento da Ajuda.


               Saltei. A rua estava negra de gente. Os focos elétricos da Avenida mais de sombra enchiam aquele
               canto – a porta tão triste onde a turba se acotovelava.
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