Page 72 - 3M A ALMA ENCANTADORA DAS RUAS
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Sou eu Mina de Ouro
Trazendo nosso Bogari.
Era intimativo, definitivo. Havia porém outro. E esse cantava adulçorado:
Meu beija-flor
Pediu para não contar
O meu segredo
A Iaiá.
Só conto particular.
Iaiá me deixe descansar
Rema, rema, meu amor
Eu sou o rei do pescador.
Na turba compacta o alarma correu. O cordão vinha assustador. A frente um grupo desenfreado
de quatro ou cinco caboclos adolescentes com os sapatos desfeitos e grandes arcos pontudos
corria abrindo as bocas em berros roucos. Depois um negralhão todo de penas, com a face
lustrosa como piche, a gotejar suor, estendia o braço musculoso e nu sustentando o tacape de
ferro. Em seguida gargolejava o grupo vestido de vermelho e amarelo com lantejoulas d’ouro a
chispar no dorso das casacas e grandes cabeleiras de cachos, que se confundiam com a epiderme
num empastamento nauseabundo. Ladeando o bolo, homens em tamancos ou de pés nus iam por
ali, tropeçando, erguendo archotes, carregando serpentes vivas sem os dentes, lagartos
enfeitados, jabutis aterradores com grandes gritos roufenhos.
Abriguei-me a uma porta. Sob a chuva de confetti, o meu companheiro esforçava-se por alcançar-
me.
– Por que foges?
– Oh! estes cordões! Odeio o cordão.
– Não é possível.
– Sério!
Ele parou, sorriu:
– Mas que pensas tu? O cordão é o carnaval, o cordão é vida delirante, o cordão é o último elo
das religiões pagãs. Cada um desses pretos ululantes tem por sob a belbutina e o reflexo
discrômico das lantejoulas, tradições milenares; cada preta bêbada, desconjuntando nas
tarlatanas amarfanhadas os quadris largos, recorda o delírio das procissões em Biblos pela época
da primavera e a fúria rábida das bacantes. Eu tenho vontade, quando os vejo passar
zabumbando, chocalhando, berrando, arrastando a apoteose incomensurável do rumor, de os
respeitar, entoando em seu louvor a "prosódia" clássica com as frases de Píndaro – salve grupos
floridos, ramos floridos da vida...