Page 69 - 3M A ALMA ENCANTADORA DAS RUAS
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– É.


               Cerca de três mil pessoas – pessoas de todas as classes, desde a mais alta e a mais  rica  à mais
               pobre e à mais baixa, enchia aquele trecho, subia promontório acima. E o aspecto era edificante.
               Grupos de rapazes apostavam em altos berros subir à igreja pela rocha; mulheres em desvario
               galgavam a correr por outro lado, patinhando a lama viscosa. Todos os trajes, todas as cores se
               confundiam  num  amálgama  formidável,  todos  os  temperamentos,  todas  as  taras,  todos  os
               excessos, todas as perversões se entrelaçavam. Quis notar o elemento predominante. Num trecho
               havia mais pretas com soldados. Adiante logo, o domínio era de gente de serviço braçal, um pouco
               mais  longe a tropa se fazia de rapazelhos do comércio  e, se dávamos um passo, outro grupo de
               mocinhas com senhores conquistadores se nos antolhava. Todo esse pessoal gritava.


               Logo na subida encontrei um meninote engolindo uns restos de vinho do Porto pelo gargalo da
               garrafa. Em meio do caminho um grupo do Clube dos Democráticos, de guarda-chuva branco e
               preto, tocava guitarras e assobios.


               De  todos  os  lados  partiam  cantos  de  galo.  Os  cocoricós  clássicos  vinham  finos,  grossos,
               roufenhos, em falsete: – Cocoricó! Cocoricô!


               –Já ouviste cantar o galo?


               – Pois hoje não é a missa dele?


               – Cocoricó! pega ele pra capar!


               – Pega!


               A igrejinha estava toda iluminada exteriormente à luz elétrica. Defronte de sua fachada lateral
               haviam armado um botequim. A turba arfava aí, presa entre a bodega e o templo. Quando eu
               passei, porém, a bodega fora devorada e bebida. Os caixeiros tinham trepado para os balcões
               no desejo de apreciar a cena. Fiz um violento esforço para entrar na igreja. À porta havia uma
               verdadeira luta e dentro ninguém se podia mexer. Divisei apenas como indicação humilde do dia
               – um presepe no lado esquerdo, um presepe com pano de fundo representando fielmente um
               trecho de Cascadura, e estava assim embebido, quando de repente estalou o rolo, o rolo rápido
               e habitual. Um sujeito apanhara uma bengalada, levantara o guarda-chuva, uma menina gritara:
               – nunca mais venho à missa! E no roldão da turba medrosa, de novo caí na ladeira, ouvindo os
               cocoricós, as chufas, as graças sórdidas:


               – Pega pra capar! Cocoricó! Já ouviste o galo?


               No céu cor de chumbo, ameaçador de temporais, espocavam girândolas de foguetes. E todo
               aquele trecho, mais aquecido, mais feroz, mais cheio de gente redobrava de deboche, de frenesi
               pândego, de loucura, quebrando copos, cantando, assobiando, praguejando, ganindo.
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