Page 71 - 3M A ALMA ENCANTADORA DAS RUAS
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– Pois faz muito bem. Adeus.
– Adeus, meu senhor!
– E continuou – ó coisa incrível! – de joelhos, voltado para Deus, lembrando a sua aldeia,
lembrando os paizinhos, pedindo o bem – enquanto pela cidade inteira as ceatas e as pândegas
desencadeavam os ímpetos desaçaimados...
Cordões
Oh! abre ala!
Que eu quero passá
Estrela d’Alva
Do Carnavá!
Era em plena Rua do Ouvidor. Não se podia andar. A multidão apertava-se, sufocada. Havia
sujeitos congestos, forçando a passagem com os cotovelos, mulheres afogueadas, crianças a
gritar, tipos que berravam pilhérias. A pletora da alegria punha desvarios em todas as faces. Era
provável que do Largo de S. Francisco à Rua Direita dançassem vinte cordões e quarenta grupos,
rufassem duzentos tambores, zabumbassem cem bombos, gritassem cinqüenta mil pessoas. A
rua convulsionava-se como se fosse fender, rebentar de luxúria e de barulho. A atmosfera pesava
como chumbo. No alto, arcos de gás besuntavam de uma luz de açafrão as fachadas dos prédios.
Nos estabelecimentos comerciais, nas redações dos jornais, as lâmpadas elétricas despejavam
sobre a multidão uma luz ácida e galvânica, que enlividescia e parecia convulsionar os movimentos
da turba, sob o panejamento multicolor das bandeiras que adejavam sob o esfarelar constante
dos confetti, que, como um irisamento do ar, caíam, voavam, rodopiavam. Essa iluminação
violenta era ainda aquecida pelos braços de luz auer, pelas vermelhidões de incêndio e as súbitas
explosões azuis e verdes dos fogos de Bengala; era como que arrepiada pela corrida diabólica e
incessante dos archotes e das pequenas lâmpadas portáteis. Serpentinas riscavam o ar; homens
passavam empapados d’água, cheios de confetti; mulheres de chapéu de papel curvavam as
nucas à etila dos lança-perfumes, frases rugiam cabeludas, entre gargalhadas, risos, berros, uivos,
guinchos. Um cheiro estranho, misto de perfume barato, fartum, poeira, álcool, aquecia ainda mais
o baixo instinto de promiscuidade. A rua personalizava-se, tornava-se uma e parecia, toda ela
policromada de serpentinas e confetti, arlequinar o pincho da loucura e do deboche. Nós íamos
indo, eu e o meu amigo, nesse pandemônio. Atrás de nós, sem colarinho, de pijama, bufando, um
grupo de rapazes acadêmicos, futuros diplomatas e futuras glórias nacionais, berrava furioso a
cantiga do dia, essas cantigas que só aparecem no Carnaval:
Há duas coisa
Que me faz chorá
É nó nas tripa
E bataião navá!
De repente, numa esquina, surgira o pavoroso abre-alas, enquanto, acompanhado de urros, de
pandeiros, de xequerês, um outro cordão surgia.
Sou eu! Sou eu!
Sou eu que cheguei aqui