Page 62 - 3M A ALMA ENCANTADORA DAS RUAS
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– Por que fazem presepes? indago.


               Uns respondem que por promessa, outros sorriem e não dizem palavra. São os  mais numerosos.
               E a galeria continua a desfilar – presepes que parecem pombais, feitos de arminho e penas de
               aves; presepes todos de bolas de prata com bonequinhos de biscuit; presepes armados com folhas
               de latão, castiçais com velas acesas e fotografias contemporâneas, tendo por lagos, pedaços de
               espelho e o burro da Virgem com um selim à moderna; presepes em que no meio do capim há
               casas  de  dois  andares  com  venezianas  e  caras  de  raparigas  à  janela  –  uma  infinidade
               inacreditável.


               O mais interessante, porém, fui encontrar na praia Formosa, centro de um cordão carnavalesco
               de negros baianos. Essas criaturas dão-me a honra da sua amizade. O presepe está armado no
               quarto da sala de visitas.É inaudito, todo verde com lantejoulas de prata.


               O  céu,  pintado  por  um  artista  espontâneo,  tem,  entre  nuvens,  sol  com  uma  cara  raspada  de
               americano  truster,  a  lua,  maior  que  o  sol,  a  imagem  da  Virgem  Mãe.  Dois  raios  de  filó  prata
               bambamente pendem do azul sob o estábulo divino, iluminado a giorno. Descendo a montanha,
               montados em camelos, vêm os três reis magos, vestidos à turca e o rei apressado é Baltasar, o
               preto. Pela encosta do monte as majestades lendárias encontram, sem pasmo, ânimos imperiais
               quase  atuais:  Napoleão  na  trágica  atitude  de  Santa  Helena,  a  defunta  imperatriz  do  Brasil,
               Bismarck com a sua focinheira de molosso desacorrentado, uma bailarina com a perna no ar, e
               um boneco de cacete, calças abombachadas e chapéu ao alto... Iluminando a agradável confusão,
               velas de estearina morrem em castiçais de cobre.


               O grupo carnavalesco chama-se Rei de Ouros. Logo que eu apareço e das  janelas escancaradas
               a tropa me vê, entoa a canção da entrada:


               Tu-tu-tu quem bate à porta
               Menina vai ver quem é
               É o triunfo Rei de Ouros
               Com a sua pastora ao pé.


               Dentro  move-se,  numa  alegria  carnavalesca,  o  bando  de  capoeiras  perigosos  da  Rua  da
               Conceição,  de  S.  Jorge  e  da  Saúde.  A  sala  tem  cadeiras  em  roda,  ornamentadas  de  cetim
               vermelho, cortinas de renda com laçarotes estridentes. As matronas espapaçam-se  nas cadeiras,
               suando,  e,  em  movimentos  nervosos,  agitam-se  à  sua  vista  mulatinhas  de  saiote  vermelho,
               brutamontes de sapatos de entrada baixa e calção de fantasia de velho e de rei dos diabos. Há
               um cheiro impertinente de suor e éter floral.


               – Uma calamistrança pra seu doutô! brada o Dudu, um magro, conhecido por inventar nomes
               engraçados, o Bruant da populaça


               E a gente do reisado logo batendo palmas, pandeiros e berimbaus:


               Ora venha ver o que temos di dá
               Garrafas de vinho, doce de araçá.
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