Page 60 - 3M A ALMA ENCANTADORA DAS RUAS
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Há os versículos de Mateus: "Jesus nasceu em Belém de Judá, nos tempos do rei Herodes. Vimos
a sua estrela no Oriente e viemos adorá-lo"; sabe-se que presepe significa etimologicamente
estrebaria ou jaula. Os gnósticos vêm, com esses dois elementos, simbólicos, confusos; os sábios
indagam de mais e, enquanto estes esterilmente escrevem páginas estéreis, os povos criam a
legenda suave, e a legenda perdura, cresce, aumenta, esplende numa doce apoteose de
perfumes e de bem.
Os presepes são uma criação popular. Antes dos artistas de Paris e Viena, que expõem nos salões
do Campo de Marte e no Kunstlerhaus, o povo criou nos presepes o anacronismo religioso, o
anacronismo que, segundo la Sizeranne, é a fé; pôs, como Breughel nos Peregrinos de Emaús e
Beraud na Madalena entre os Fariseus, homens de hoje nas cenas do Velho Testamento.
Os presepes, como as telas do Renascimento, são as reconstituições religiosas com a cor local
contemporânea. Os psicólogos podem psicologar num reisado a alma nacional e a intensidade da
crença. Cristo para os homens simples está sempre, é a perene luz salvadora. Por isso cada
presepe é um mundo onde homens e animais de todas as épocas renovam anualmente a
admiração de um suave milagre.
Fui ver numa das últimas noites de chuva alguns desses mundos de religião e de tradição.
É impossível para os que viram o bumba-meu-boi realizado pelo venerável Melo Morais e o
belicoso Dr. Silvio Romero, quase como uma reconstituição de costumes, imaginar o número de
presepes que este ano tem o Rio. Há para mais de quarenta.
Começamos pelo presepe da Rua Frei Caneca, o Centro Pastoril, que tem uma diretoria composta
dos Srs. Liberato Serra, presidente honorário; Manuel Novela, presidente; mais dos Srs. Pedro
Hugo, Faria, Alfredo Belfort, Manuel de Macedo, Francisco de Paula Azevedo e Raul Machado.
Os ensaios do reisado realizaram-se na Rua Formosa e os diretores alugaram a sala e a primeira
alcova da casa da Rua Frei Caneca apenas para que a festa redobrasse de brilho.
A sala está toda enfeitada, com dois pequenos estrados feitos de madeira, onde devem sentar a
polícia e os reporters, um defronte da outro, sempre juntos e sempre adulados.
Ao fundo ergue-se o presente que toma a alcova. O céu deste ameaça chuva; grossas nuvens
algodoam a sua celestial vastidão. As estrelas, entretanto, mais o sol e mais a lua, numa doce
confraternização, atravessam nuvens e azul com o brilho fulgurante das malacachetas e das velas
– porque são de malacachetas as estrelas, e têm por trás uma vela providencial tanto a lua como
o sol.
Da montanha a pico, por caminhos aspérrimos, vêm descendo os três reis lendários com um ar
açodado de beduínos em fuga, e nessa descida, os seus olhos pintados vão vendo chalets suíços,
animais no pasto, militares posteriores ao império do Tetrarca, mulherinhas gordas de avental e a
luz da estrela que os guia escorrendo do céu em dois grossos fios de prata. Embaixo, no primeiro
plano, há um grande movimento. De um lado, ardendo na sombra do milagre e de alguns copinhos
coloridos, está o estábulo, onde se dá o mistério do nascimento de Deus; de outro, uma fachada
de papel de seda, em que eu imagino ver Jerusalém, cujas portas caíram ao som das trombetas.