Page 53 - 3M A ALMA ENCANTADORA DAS RUAS
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E o Saldanha, pançudo, grave, imperturbável:


               – Obrigado pelo elogio!


               Pois todo o pessoal enriqueceu. O negro casou em Portugal , o Zás-trás conseguiu tudo com jeito,
               e  eu  fui  encontrar  o  Saldanha  aposentado,  considerado  como  um  velho  artista  diante  de um
               copo de cerveja.


               –  Fizemos  várias  tournées,  disse-me  ele,  percorremos  o  Brasil,  do  Rio  Grande  ao  Pará.
               Ajuntamos alguma coisa...


               E  não  se  trata  de  um  caso  esporádico.  O  resultado  é  geral.  O  José,  italiano  capenga,  que
               chegou ao Rio em 1875, alugou, para não trabalhar, um piano de manivela. Em seguida, o seu
               espírito inventivo foi até comprar um realejo  com bonecos mecânicos, entre os quais havia um de
               mão estendida, que engolia as moedas e punha fora outra qualquer coisa. Esse boneco, a valsa
               dos Sinos de Corneville, o Caballero de Gracia e o Bendengó deram-lhe uma fortuna. E José
               resolveu jogar, à farta, jogar forte.


               Jogou  tanto  que  teve  de  arranjar  um  sócio,  personagem  fantástico,  que  dá  pela  alcunha  de
               Cavalière Midaglia.


               O Cavalière gosta também da batota e principalmente do bicho. Até duas horas, dinheiro para o
               avestruz; nas primeiras horas da noite, cervejinha na fábrica Santa-Maria; depois, la mare dos
               baralhos e dados. Parece incrível que um realejo, moendo os sinos, dê dinheiro para tantos vícios.
               Pois José tem ainda dinheiro para ir à Itália ver Nápoles e depois voltar. Já lá foi mais de vinte
               vezes.


               Está claro que a música, tendo por fim adoçar os costumes, não arrasta todos os seus cultores
               aos desvarios do monte e da roleta. Há realejos que sustentam numerosas famílias, como o do
               Vicente, italiano falsamente cego, que desconfia dos filhos, joga a bisca a milho nos botequins das
               Ruas Formosa e do Areal e já adquiriu alguns prédios; há realejos escravizadores, como o do
               Antônio Capenga, da estação do Mangue, que espanca os dois pequenos cobradores se por acaso
               deixam passar um bonde sem lhes dar nada, embora o bonde vá vazio – porque Antônio tem
               amantes  e,  à  custa  de  sons  que  na  sua  algibeira  retinem  em  moedas,  resolveu  a  vida
               epicuristamente nos três princípios fundamentais: mulheres, jogo e vinho; há realejos solteiros
               malandros, realejos virgens prontos para a fuga.


               A música chega mesmo em certos casos a harmonizar dissabores num acorde feliz. É o caso do
               Amaral carpinteiro. Este Amaral cortou certa vez a mão com uma enxó. Meteu a dita mão em
               ataduras e resolveu nunca mais trabalhar. Ao contrário do pastor Jacó, sete anos levantou de papo
               para o ar compondo versinhos; dedicou-se em seguida a vender modinhas – era o Araruama. E
               nesse serviço descobriu-se vocações musicais.


               Hoje é sumidade, é o Caruso das Ruas de S. Jorge e Conceição e não há botequim de café a três
               vinténs a xícara, onde a sua voz não requebre o
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