Page 54 - 3M A ALMA ENCANTADORA DAS RUAS
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Olé lé lé
Candonga Sinhá.
Nas mesmas condições está o Miguel de Brito. Apesar de português, foi inferior do exército.
Quando deu baixa, comprou um Gramofone para ganhar, como dizia, a vida na roça. Partiu para
o Rio Bonito, alugou um salão e estava exatamente pregando um cartaz à porta, quando ouviu
na casa fronteira tocar um gramofone muito mais aperfeiçoado que o seu. Era a musa da música
decerto que o prevenia, desejosa de evitar um confronto desagradável. Brito arrancou o cartaz,
vendeu o Gramofone, agradeceu à musa e só com sua garganta veio triunfar nas bodegas do
Rio.
As bodegas, como os botequins do tom, toleram de vez em quando os músicos, com a condição
de não lhes pagar nada. Em geral são sempre três – os tercetos célebres. Há na Rua do Senhor
dos Passas o do Amadeu com as duas irmãs, que, por sinal, já fugiram; na Avenida Passos
chefiado pelo Barradas, cego – terceto famoso, por ter percorrido todas as cidades de Espanha,
de Portugal, do Chile, do Uruguai, da Argentina e do Brasil; o da fábrica de cerveja Oriente, o da
cervejaria Minerva, cujo chefe, o Antônio rabequista, gosta de ser acompanhado de canto. A
cervejaria enche-se de trabalhadores atraídos pela alegria dos sons. Sempre uma canção
melancólica abre um hiato sentimental entre os fandangos e os cakewalks.
Tanto penar, tanto sofrer.
Amor me mata,
Amor me mata.
Eu vou morrer.
Ninguém morre, e um português do Minho que lá passa a noite, brada:
– Eu cá dinheiro não dou, mas se tocar a cana-verde pago a cerveja!
E a cana-verde conclui a canção melancólica.
Oh! eu conheci nessas baiúcas rumorejantes, onde a populaça vive atraída pela música, até um
globe-trotter! Era um veneziano de vinte e três anos, Rafael Angelo, tenor. Nos botequins em
que os proprietários eram portugueses cantava o rebola a bola, nos estabelecimentos
espanhóis, o caballero di gracia me llaman, e, lindo, conquistador, com olhares mortos para as
mulheres, era uma delícia ouvi-lo, derreando os braços para os lados, como cansado de
abraçar, a cantar:
Fra le donne tu sei la piú bella,
Fra le rose tu sei la piú fina
E nel cielo brilhante stella
Nella terra sei nata regina.
A segunda vez que me viu entre os carregadores descalços, Rafael inaugurou o seu mais belo
gesto e disse-me: