Page 57 - 3M A ALMA ENCANTADORA DAS RUAS
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dois  ou  três  em  trinta  anos.  O  ofício,  longe  de  tornar  ágeis  os  corpos,  faz  lesões  cardíacas,
               atrofia as pernas, hipertrofia os braços, de modo que quinze anos de boléia, de visão elevada do
               mundo, ao sol e à chuva, estragam e usam um homem como a ferrugem estraga o aço  mais fino.
               O Braga era um velho trapo encharcado. Tanto ádipo dava-me a impressão de que o pobre velho
               devia ter água nos tecidos.


               Eu continuava a ouvi-lo. Naquela boléia falava um cultor do quietismo, um renanista que tivesse
               compreendido o nirvana. Nem uma ambição, nem um ódio: apenas um sorriso de quem não se
               rala com a vida e vem para a rua almejando não encontrar fregueses, para dormir mais à vontade.


               – Ah! este carro! murmurei. Quanta história podia você contar. Quantas cenas de amor, quantos
               beijos, quantas angústias e quantos crimes!


               – Este carro não; outros, ou antes, eu. Fui de cocheira, fui de casa particular e trabalhei por minha
               conta. Quando caiu o ministério João Alfredo fui eu quem o levou ao Paço. Agora essas coisas de
               beijos – noutro tempo era nas berlindas.


               – Tinha vontade de saber a sua opinião.


               Ele arregalou muito os olhos.


               – A respeito de beijos? Sei lá!


               – Não, a respeito da Monarquia e da República.


               Ele sorriu, pensou.


               – A Monarquia tinha as suas vantagens. Era mais bonito, era mais solene. Não vá talvez pensar
               que  eu  sou  inimigo  da  República.  Mas  recorde  por  exemplo  um  dia  de  audiência  pública  do
               imperador. Que bonito! Até era um garbo levar os fregueses lá. Ó Braga, onde estiveste? Fui à
               Boa Vista! Hoje todo o mundo entra no palácio do Catete. Não tem importância... É verdade que
               o  Obá  entrava  no  Paço.  Mas  era  príncipe.  E  então  para  conhecer  homens  importantes!  Não
               precisava saber-lhes o nome. Os ministros tinham  uma farda bonita, o imperador saía de papo de
               tucano. Bom tempo aquele! Hoje a gente tem de suar para conhecer um ministro. Parecem- se
               todos com os outros homens.


               – Talvez não sejam, Braga.


               – Quanto às capacidades não digo nada...Mas veja. Por estar perto da secretaria é que conheço
               o Müller, um magro, que reforma a cidade. E de todo o ministério só ele. Se isso era possível em
               1880! Depois, quer saber? A República trouxe a Bolsa, uma porção de cocheiros estrangeiros,
               uns gringos e ingleses de cara raspada, com uns carros que até nem eu lhes sabia o nome!
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