Page 48 - 3M A ALMA ENCANTADORA DAS RUAS
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As lâmpadas tremem, esticam-se na ânsia de queimar o narcótico mortal. Ao fundo um velho
idiota, com as pernas cruzadas em torno de um balde, atira com dois pauzinhos arroz à boca. O
ambiente tem um cheiro inenarrável, os corpos movem-se como larvas de um pesadelo e essas
quinze caras estúpidas, arrancadas ao bálsamo que lhes cicatriza a alma, olham-nos com o susto
covarde de coolies espancados. E todos murmuram medrosamente, com os pés nus, as mãos
sujas:
– Não tem dinheiro... não tem dinheiro... faz mal!
Há um mistério de explorações e de horrores nesse pavor dos pobres celestes. O meu amigo
interroga um que parece ter vinte e parece ter sessenta anos, a cara cheia de pregas, como papel
de arroz machucado.
– Como se chama você?
– Tchang... Afonso.
– Quanto pode fumar de ópio?
– Só fuma em casa... um bocadinho só... faz mal! Quanto pode fumar? Duzentas gramas,
pouquinho... Não tem dinheiro.
Sinto náuseas e ao mesmo tempo uma nevrose de crime. A treva da sala torna-se lívida, com tons
azulados. Há na escuridão uma nuvem de fumo e as bolinhas pardas, queimadas à chama das
candeias, põem uma tontura na furna, dão-me a imperiosa vontade de apertar todos aqueles
pescoços nus e exangues, pescoços viscosos de cadáver onde o veneno gota a gota dessora.
E as caras continuam emplastradas pelo mesmo sorriso de susto e de súplica, multiplicado em
quinze beiços amarelos, em quinze dentaduras nojentas, em quinze olhos de tormento!
– Senhor, pode ir, pode ir? Nós vamos deitar; pode ir? – suplica Tchang.
Arrasto o guia, fujo ao horror do quadro. A rótula fecha-se sem rumor. Estamos outra vez num
beco infecto de cidade ocidental. Os chins pelas persianas espiam-nos. O meu amigo consulta o
relógio.
– Este é o primeiro quadro, o começo. Os chins preparam-se para a intoxicação. Nenhum deles
tinha uma hora de cachimbo. Agora, porém, em outros lugares devem ter chegado ao
embrutecimento, à excitação e ao sonho. Tenho duas casas no meu booknotes, uma na Rua da
Misericórdia, onde os celestes se espancam, jogando o monte com os beiços rubros de mastigar
o
folhas de bétel, e à Rua d. Manuel n 72, onde as fumeries tomam proporções infernais.