Page 52 - 3M A ALMA ENCANTADORA DAS RUAS
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tão desaparecido como o megatério – o homem dos sete instrumentos! E esse homem, cheio de
instrumentos, ia por aí fora, satisfeito e corado, como se tivesse realizado uma agradável receita.
Os músicos vieram todos! Não perde a cidade os seus foros de musical – o Rio, onde tudo é
música, desde a poética música dos beijos à decisiva música de pancadaria.
Novamente à beira das calçadas a Valsa dos Sinos e O Guarani se desarticulam em velhos pianos;
novamente sujeitos, que parecem cegos, rodam a manivela dos realejos, estendendo a mão
súplice, numa ânsia de miséria; novamente, depois de alguns trechos da sonante Boêmia, um
piresinho de metal se vos oferecerá, desejoso de níqueis. E todos vós, que sois bons, e todos
vós, que gostais de música, haveis de deplorar os coitados que alegram os outros para viver na
miséria, com a alma varada de dor, e todos vós sofrereis a crise de harmonia. Oh! a música!
Elle mouille comme la pluie, Elle brûle comme le feu.
Uma sanfona faria Harpagon generoso e Lady Macbeth boa.
Esta cidade é essencialmente musical; era impossível passar sem os músicos ambulantes. A
música preside à nossa vida, a música auxilia até a gestação, e, consista apenas na voz como diz
Sócrates, consista, pretende Aristoxeno, na voz e nos movimentos do corpo, ou reúna à voz os
movimentos da alma e do corpo como pensa Teofrasto, tem os caracteres da divindade e comove
as almas. Pitágoras, para que a sua alma constantemente estivesse penetrada de divindade,
tocava cítara antes de dormir e logo ao acordar de novo à cítara se apegava. Asclepíades, médico,
acalmava os espíritos frenéticos empregando a sinfonia, e Herófilo pretendia que as pulsações
das veias se fazem de acordo com o ritmo musical. Os músicos ambulantes são os descendentes
dos tocadores da flauta, caros aos deuses da Hélade.
Não pensemos, porém, romanticamente, que todos os músicos morrem de fome ao cair das
ilusões. Antes pelo contrário. A biografia de cada um serve de assunto a todo o boêmio desejoso
de ser feliz. Quem conhece o Saldanha, um velho português baixo, gordo e cego, que viola há
mais de vinte anos com um negro também cego da ilha da Madeira, flautista emérito? Esses dois
cegos eram acompanhados por um guitarrista escovado, que tocava, fazia a cobrança e ainda
por cima era poeta, compunha as cançonetas. Um momento a cidade inteira cantou a sua célebre
quadra:
Zás-trás, zás-trás
Malagueta no cabaz
Com jeito tudo se arranja
Com jeito tudo se faz
o que não o recomenda muito ao senso estético do Rio. Quando os cegos e esse zás-trás
amolavam muito, lá havia sempre algum para gritar:
– Ó Lírico ambulante!