Page 50 - 3M A ALMA ENCANTADORA DAS RUAS
P. 50

filosóficas  rabiscadas  a  nanquim.  O  chão  está  atravancado  de  bancos  e  roupas,  e  os  chins
               mergulham a plenos estos na estufa dos delírios.


               A  intoxicação  já  os  transforma.  Um  deles,  a  cabeça  pendente,  a  língua  roxa,  as  pálpebras
               apertadas, ronca estirado, e o seu pescoço amarelo e longo, quebrado pela ponta da mesa, mostra
               a papeira mole, como a espera da lâmina de uma faca. Outro, de cócoras, mastigando pedaços
               de massa cor de azinhavre, enraivece um cão gordo, sem cauda, um cão que mostra os dentes,
               espumando.  E  há  mais:  um  com  as  pernas  cruzadas,  lambendo  o  ópio  líquido  na  ponta  do
               cachimbo;  dois  outros  deitados,  queimando  na  chama  das  candeias  as  porções  do  sumo
               enervante.  Estes  tentam  erguer-se,  ao  ver-nos,  com  um  idêntico  esforço,  o  semblante
               transfigurado.


               – Não se levantem, à vontade!


               Sussurram palavras de encanto, tombam indiferentes, esticam com o mesmo movimento a mão
               cadavérica para a lâmpada e fios de névoa azul sobem ao teto em espirais tênues.


               Três, porém, deste bando estão no período da excitação alegre, em que todas as franquezas
               são permitidas. Um deles passeia agitado como um homem de negócio. É magro, seco, duro.


               – Vem vender ópio? Bom, muito bom... Compro. Ópio bom que não seja de Bengala. Compro.


               Logo outro salta, enfiando uma camisola:


               – Ah! ah! Traz ópio? Donde?


               – Da Sonda...


               Os três grupam-se ameaçadoramente em torno de nós, estendendo os braços tão estranhos e tão
               molemente  mexidos  naquele  ambiente  que  eu  recuo  como  se  os  tentáculos  de  um  polvo
               estivessem  movendo  na  escuridão  de  uma  caverna.  Mas  do  outro  lado  ouve-se  o  soluço
               intercortado de um dos opiados. A sua voz chora palavras vagas.


               – Sapan... sapan... Hanoi... tahi...


               O chin magro revira os olhos:


               –  Ele  está  sonhando.  Affal  está  sonhando.  Ópio  sonho...terra  da  gente  namorada...  bonito!
               bonito!... Deixa ver amostra.


               O meu amigo recua, um corpo baqueia – o do chinês adormecido – e os outros bradam:
   45   46   47   48   49   50   51   52   53   54   55