Page 55 - 3M A ALMA ENCANTADORA DAS RUAS
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– Noto a V. Exa. que isto é apenas uma extravagância boêmia. Resolvi percorrer o mundo em
               quatros anos, sem ter um vintém de capital. Já estive em Londres, em New York, em Chicago...
               Estou no Rio de Janeiro há um mês. Che belleza.


               Era o Phileas Fogg da cançoneta e arranjava dez a quinze mil réis diários, fora as paixões das
               damas.


               Quase todos esses músicos ambulantes e aventureiros ganham rios de dinheiro, vivendo uma vida
               quase lamentável. No forro dos casacos velhos há maços de notas, nos cinturões sebentos, vales
               ao portador. O público pára, olha aquela tristeza, imagina no automatismo dos gestos, na face que
               pede, no sorriso postiço, a fome dos artistas, a miséria dos deserdados da sorte, e sonha as
               agonias, como nas óperas, em que os tenores morrem ao sol, sob um céu lindo, cantando.


               Por trás dessa fachada há tanto interesse como no negociante mais avaro e tanta vaidade como
               num artista lírico mais vaidoso – porque esses músicos ambulantes, humanos como todos nós,
               nascidos neste mesmo século de vaidade, regulam os seus ideais entre a pretensão, o alto juízo
               do próprio valor e o número de moedas da coleta. Oh! a música, as árias perdidas no ruído das
               ruas...Alguém já assegurou que a alma do homem conhece sua natureza pelo  canto. Cheguemos
               à  suave  conclusão  de  que  conhece  a  natureza  e  o  resto.  De  que  serviria  um  realejo  senão
               assegurasse ao seu possuidor, além do conhecimento da própria alma, a satisfação do estômago?
               Há talvez em outras terras, mais gastas e mais frias, a miséria dos músicos ambulantes, sem fogo,
               sem pão, caindo sob a neve, depois de uma dolorosa vida. Aqui não; os músicos prosperam, o
               realejo é uma instituição, e do alto azul, a harmonia bondosa da natureza, musa da vida e da
               alegria, derrama o consolo incomparável do calor e da luz. .


               Velhos Cocheiros


               Outro dia, ao saltar de um tílburi no antigo Largo do Paço, vi na boléia de um vis-à-vis pré- histórico
               a ventripotência colossal de um velho cocheiro. As duas mãos gorduchas à altura do peito como
               quem vai rezar, enfiado numa roupa esverdinhada, o automedonte roncava. Seria uma recordação
               literária ou a memória de uma fisionomia de infância? Seria o cocheiro da Safo, o irmão mais velho
               de Simeon, ou simplesmente um velho cocheiro que eu tivesse visto na doce idade em que todas
               as emoções são novas? Era difícil adivinhar. Para os cérebros cheios de literatura, a verdade
               obumbra-se tanto que é sempre preciso perguntar por ela como o fez Poncius Pilatos diante de
               Deus.


               Fui para perto do vis-à-vis, bati na perna do velho. Estava feio. O ventre, um ventre fabuloso,
               parecia uma talha que lhe tivessem entalhado ao tronco; as pernas, sem movimento, pendiam
               como traves; os braços, extremamente desenvolvidos, eram quase maiores que as pernas; e a
               caraça vermelha, com tons violáceos, lembrava os carões alegres do Carnaval.  Abriu, entretanto,
               uma das pálpebras com mau humor e resmungou:


               – Pronto!


               – Então você não me conhece mais?


               – Eu não, senhor.
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