Page 51 - 3M A ALMA ENCANTADORA DAS RUAS
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– Amostra... você traz amostra!
Sem perder a calma, esse meu esquisito guia mete a mão no bolso da calça, tira um pedaço de
massa envolvido em folhas de dormideira, desdobra-o. Então o delírio propaga-se. O magro chin
ajoelha, os outros também, raspando a massa com as unhas, mergulhando os dedos nas bocas
escuras, num queixume de miséria.
– Dá a amostra...não tem dinheiro...deixa a amostra!
Miseravelmente o clamor de súplica enche o quarto na névoa parda estrelejada de hóstias
sangrentas. Os chins curvam o dorso, mostram os pescoços compridos, como se os entregassem
ao cutelo, e os braços sem músculos raspam o chão, pegando-nos os pés, implorando a dádiva
tremenda. Não posso mais. Cãimbras de estômago fazem-me um enorme desejo de vomitar. Só
o cheiro do veneno desnorteia. Vejo-me nas ruas de Tien-Tsin, à porta das cagnas, perseguido
pela guarda imperial, tremendo de medo; vejo-me nas bodegas de Cingapura, com os corpos dos
celestes arrastados em djinrickchas, entre malaios loucos brandindo kriss assassinos! Oh! o
veneno sutil, lágrima do sono, resumo do paraíso, grande matador do oriente! Como eu o ia
encontrar num pardieiro de Cosmópolis, estraçalhando uns pobres trapos das províncias da China!
Apertei a cabeça entre as mãos, abri a boca numa ânsia.
– Vamos, ou eu morro!
O meu amigo, então, empurrou os três chins, atirou-se à janela, abriu-a. Uma lufada de ar entrou,
as lâmpadas tremeram, a nuvem de ópio oscilou, fendeu, esgueirou-se, e eu caí de bruços, a
tremer diante dos chins apavorados e nus.
Fora, as estrelas recamavam de ouro o céu de verão...
Músicos Ambulantes
Músicos ambulantes! Um momento houve em que todos desapareceram, arrastados por uma
súbita voragem. Os cafés viviam sem as harpas clássicas e nas ruas, de raro em raro, um realejo
aparecia. Por quê? Teriam sido absorvidos pelos cafés-cantantes, dominados pelos prodígios do
gramofone – essa maravilha do século XIX, que não deixa de ser uma calamidade para o século
XX? Não. Fora apenas uma súbita pausa tão comum na circulação das cidades.
Apesar dos gramofones nos hotéis, nos botequins, nas lojas de calçados, apesar da intensa
multiplicação dos pianos, eles foram voltando, um a um ou em bandos, como as andorinhas
imigrantes, e, de novo, as tascas, as baiúcas, os cafés, os hotéis baratos, encheram-se de
canções, de vozes de violão e de guitarra e, de novo, pelas ruas os realejos, os violinos, as gaitas,
recomeçaram o seu triunfo.
Há já alguns meses mesmo, uma banda alemã, com instrumentos, estantes e desafinações,
atormenta as grandes praças, e eu lobriguei outro dia ainda um bicho lendário por mim julgado